sexta-feira, 4 de junho de 2010

Metamorfose



”...Lembro-me de uma manhã em que eu havia descoberto um casulo na casca de uma árvore, no momento em que a borboleta rompia o invólucro e se preparava para sair. Esperei bastante tempo, mas estava demorando muito e eu estava com pressa.
Irritado, curvei-me e comecei a esquentá-lo com meu hálito. Eu o esquentava, impaciente e o milagre começou a acontecer diante de mim, a um ritmo mais rápido que o natural. O invólucro se abriu, a borboleta saiu se arrastando e nunca hei de esquecer o horror que senti então: suas asas ainda não estavam abertas e com todo o seu corpinho que tremia, ela se esforçava para desdobrá-las.
Curvando por cima dela, eu a ajudava com o meu hálito, em vão. Era necessária uma paciente maturação, o desenrolar das asas devia ser feito lentamente ao sol; agora era tarde demais. Meu sopro obrigara a borboleta a se mostrar toda amarrotada antes do tempo. Ela se agitou desesperada e alguns segundos depois, morreu na palma da minha mão.
Aquele pequeno cadáver é, eu acho, o peso maior que tenho na consciência. Pois, hoje, entendo bem isto: é um pecado mortal forçar as grandes leis. Temos que não nos apressar, não ficarmos impacientes, seguir com confiança e ritmo eterno”.
Nikos Kazantzákis


Foto: Casulo, de Ana Marques


Tudo tem o seu tempo certo. E como aprender a vida se assemelha à metáfora, à metamorfose! Veja como as convidativas e necessárias rupturas incessantemente desafiam. É como vencer o invólucro! É preciso trabalhar esse processo... Tempo!

Os ambientes onde construímos nossas aprendizagens do cotidiano são igualmente eivados de possibilidades contraditórias, diferenças, surpresas e tantos outros senões... É que lidamos com o ser humano, com sua incompletude, sua incerteza, sua beleza, sua mágica exuberância e sua contundente complexidade, de seus múltiplos e diversos valores.

Ali, nesses mesmos ambientes, nos confrontamos, por certo, com tropeços do nosso discernimento, com a insensatez que perambula solta e com a pequenez que retumba da turbulência de tempos idos, ainda não mitigada. Feridas expostas, quase gangrenadas. Dores lancinantes.

Precipitamos escolhas e embarcamos a rumos desconhecidos. Depois, mal resolvidos, queremos a todo custo desembarcar do trem a toda velocidade. Queremos pular. E pulamos mesmo! É quando nos damos conta das feridas que agora marcam o pulo. Cicatrizes de escolhas.

Quantas e quantas vezes sopramos mais do que devíamos! Alimentamos mais ainda as dores, porque não lhe concedemos o tempo de cura! As frustrações viram mágoas, o hálito quente da obsolescência faz aumentar a perda. A ira se aquece no sopro do ostracismo, fica à margem dos passos. A sede de justiça, vilipendiada, ao calor do orgulho ferido, fulmina a verdade num silencioso "autoextermínio". A integridade, ferida de morte, na quentura do revide, abraça o revanchismo tosco, inconsequente e bestial.

No afã de respostas, reparos à dor sentida, nos metemos num ciclo de marginalidade, onde tornamo-nos algozes das utopias que forjaram nossos já combalidos valores. A consciência do duradouro esfacela-se na escaldante incompreensão de efemeridades. O infinito dos sonhos vira ponto final, finito das buscas.

Sopramos mais do que devíamos... Protagonizamos grandes desencontros cravados de interpretações dúbias de nós mesmos. Já não há estupefação! Vaidades exacerbadas servem à subjetivação da empáfia. Teimamos abdicar da verdadeira condição de aprendizes. Não se desenvolve a atitude da paciência, do diálogo, do autorrespeito, do autocuidado. Os compromissos evolutivos são desmanchados.

A humanidade, desencontrada de si mesma, faz descortinar esses cenários. Assistimos, impávidos, balas perdidas ceifando inocentes; transgressões no trânsito virando desmanche de famílias; avidez por dividendos virando massacre social, pobreza esquecida e estigmatizada; amores desencontrados virando jazigos que silenciam a esperança. E assim, cada um, filho das lágrimas que violentam a vida, passa a negligenciar o respeito a si e outrem, maculando a dignidade. Sopramos mais do que devíamos... Julgamos fácil, ao sabor das próprias incompletudes cegadas.

A reversão dessa chacina exige, antes de soprar em demasia, o imprescindível mútuo respeito, procurando resolver as discordâncias, não pela aceitação passiva ou auto violentadora, mas pela síntese dos contrários, por uma postura crítica, revisionista e compreensiva, à luz de uma visão holística requerida. É indispensável aprender a confiar no ser humano, a estabelecer um credo de fé na humanidade.

A Psicopedagoga  Antonia Nakayama argumenta, em relação ao aprendizado, que é preciso levar na alma um pouco de marinheiro e o entusiasmo pela travessia; um pouco também do pirata, aventureiro de mares desconhecidos e um pouco de poeta, para mostrar a busca do aprender como metáfora da própria vida, e ainda, muita paciência para esperar o momento em que se possa assumir o controle do próprio barco, para somente depois, alcançar outros tantos portos com o que se construiu de conhecimento e de si mesmo. O processo de apreender a vida, no qual somos atores e autores – nós nos confundimos nesse palco –, só pode ter como meta a autonomia, mas não nos esqueçamos da borboleta em seu casulo... É preciso ser paciente nessa construção, posto que isso pressupõe a construção do outro e de si.

É preciso servir atitudes de empatia e inclusividade, enquanto atenção não preferencial, enquanto posturas acolhedoras das polaridades que transitam no nosso universo. O isolacionismo não tem lugar. De costas e escondido das pessoas que partilham o mesmo trajeto que eu, não consigo ver onde erro, não tenho a dimensão dos meus acertos. Não avanço. Corro o risco de sofrer o mal da paralítica arrogância.

O convite se coloca para aprender a trabalhar as ansiedades, no ritmo e tempo exigidos, a corrigir caminhos, retomar rumos, autocorrigir-se constantemente, propor e aceitar mudanças, melhorias graduais de nós mesmos, gerando assim a irreversibilidade dos grandes encontros de vida conquistados.

Proponho então, antes dos afoitos sopros, que aprendamos a semear sementes da coragem, da vontade, da superação, da disposição e de valores humanos. E que cada um as aqueça, no casulo do coração, para que os brotos possam ser transplantados a outros que caminham a ermo, na escuridão dos seus desencontros.


Metamorfose. Fonte:http://www.pensador.info/autor/Nikos_Kazantzak

11 comentários:

  1. MET-AMOR-FOSE,

    Com amor conseguimos entender o tempo do outro, não criticamos, não nos precipitamos, ajudamos se for necessário, se não, aguardamos até que o outro esteja pronto para alçar voos..

    Penso em mim mesma, em que tudo chegou tarde, tarde entre aspas, chegou num tempo diferente das outras pessoas, e sempre tive grandes olhos interrogativos voltados para mim exigindo explicações, posturas,
    mas só tenho à agradecer, pois cresci um ambiente de amor, que proporcionou-me a base para os meus voos e aqueles que ainda darei..

    Sempre bom vir aqui para meditar nas profundas reflexões que vc nos propoem.. retornarei, pois a segunda vez nunca é igual a primeira, deixamos escapar outras lições..

    Bjs!

    ResponderExcluir
  2. Olá amigo...quando puder, venha conhecer um pouco mais sobre a arte de fotografar, com o nosso amigo e convidado Miguel Almeida.
    Uma pessoa de um talento incrível que sentimos muito orgulho em poder apresentar a todos vocês.
    Quanto a sua postagem, é a segunda que vejo falando sobre esse tempo que temos de nos dar em prol de nossa alma, de nosso oração, de nossa vida...dar tempo ao tempo requer sabedoria...
    Um abraço no coração e na alma...

    Espaço Aberto

    ResponderExcluir
  3. Meu caro professor,

    Aqui eu aprendo. Dever ser esse o motivo da sua satisfação pela minha leitura. E pela leitura de todos que por aqui passam. Qual o mestre que não se realiza no aprendizado dos pupilos?

    Este seu texto tem as minhas mesmas palavras, em outra organização autoral. Só que extrapola, porque ensina e não só reflete.

    Queria surrupiar todas estas ideia e guardar para mim (egoísta). Preciso da sua organização reflexiva durante meus ostracismos. Cada vírgula me serviu. Foi impressionante.

    "Cúmplice do produto ordinário" você é mesmo. E nem sei porque é que ainda volta lá.

    Um abraço,

    Michelle

    ResponderExcluir
  4. Quanto custa o saber interpretar todas as palavras aqui escritas, neste mundo actual onde existem as mentes do mal que tudo destroem apenas por um orgulho fanático de malvadez humana?

    A quantos que possam ler esta postagem saberão tirar dela o proveito exigido para que o mundo possa ser de paz e harmonia total?

    Nunca isso poderá acontecer porque o homem na sua plenitude não tem capacidade para alcançar a perfeição que do alto pode ser seguida mas que, por a Soberba da vida estar enraizada em sua raça, lá estará sempre o pecado original que com ele nasceu e jamáis morrerá.

    Tudo tem o seu tempo, é verdade mas, dentro desse tempo, difícil é seguir o tempo certo para uma conjugação de vida perfeita porque a exigência da ambição apodrece a mente e a solidez que se deseja constantemente.

    Real é aquilo que aqui é dito (Sopramos mais do que devíamos), e aí se esvai o fôlego que nos alimenta a alma e nos deita por terra.

    Uma postagem muito completa que a muitos deveriam ler e pensar que afinal o que somos neste palmo de terra enlameado.

    Neste casulo em que vivemos, fraca é a cobertura que nos protege porque em vão, somos alvos de uma externa ameaça constante de uma humanização sem limites.

    Parabéns pela excelente postagem.

    Abraço e bom fim de semana.

    ResponderExcluir
  5. O ego alimentado pela descrença dos valores puníveis são a peste nessa era digitalizada, apressada e desconectada com a humanidade pertencida.

    Tudo hoje em dia muda, e muda rápido, é preciso mudar, é quase uma ordem vinda dos sabichões letrados. Mudamos tanto que já não faz mais sentido tanto bafafá.

    Somos notícia velha faz tempo.

    até mais.

    Jota Cê

    ResponderExcluir
  6. Olá, desculpe invadir seu espaço assim sem avisar. Meu nome é Fabrício e cheguei até vc através do Blog do Jefh. Bom, tanta ousadia minha é para convidar vc pra seguir meu blog Narroterapia. Sabe como é, né? Quem escreve precisa de outro alguém do outro lado. Além disso, sinceramente gostei do seu comentário e do comentário de outras pessoas. Estou me aprimorando, e com os comentários sinceros posso me nortear melhor. Divulgar não é tb nenhuma heresia, haja vista que no meio literário isso faz diferença na distribuição de um livro. Muitos autores divulgam seu trabalho até na televisão. Escrever é possível, divulgar é preciso! (rs) Dei uma linda no seu texto, vou continuar passando por aqui...rs



    Narroterapia:

    Uma terapia pra quem gosta de escrever. Assim é a narroterapia. São narrativas de fatos e sentimentos. Palavras sem nome, tímidas, nunca saíram de dentro, sempre morreram na garganta. Palavras com almas de puta que pelo menos enrubescem como as prostitutas de Doistoéviski, certamente um alívio para o pensamento, o mais arisco dos animais.


    Espero que vc aceite meu convite e siga meu blog, será um prazer ver seu rosto ali.


    Abraços

    http://narroterapia.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  7. Olá, desculpe invadir seu espaço assim sem avisar. Meu nome é Fabrício e cheguei até vc através do Blog do Jefh. Bom, tanta ousadia minha é para convidar vc pra seguir meu blog Narroterapia. Sabe como é, né? Quem escreve precisa de outro alguém do outro lado. Além disso, sinceramente gostei do seu comentário e do comentário de outras pessoas. Estou me aprimorando, e com os comentários sinceros posso me nortear melhor. Divulgar não é tb nenhuma heresia, haja vista que no meio literário isso faz diferença na distribuição de um livro. Muitos autores divulgam seu trabalho até na televisão. Escrever é possível, divulgar é preciso! (rs) Dei uma linda no seu texto, vou continuar passando por aqui...rs



    Narroterapia:

    Uma terapia pra quem gosta de escrever. Assim é a narroterapia. São narrativas de fatos e sentimentos. Palavras sem nome, tímidas, nunca saíram de dentro, sempre morreram na garganta. Palavras com almas de puta que pelo menos enrubescem como as prostitutas de Doistoéviski, certamente um alívio para o pensamento, o mais arisco dos animais.


    Espero que vc aceite meu convite e siga meu blog, será um prazer ver seu rosto ali.


    Abraços

    http://narroterapia.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  8. querido, depois passo para te ler com calma, por ora, quero apenas agradecer a crônica e dizer que escrevi algo sobre o assunto e deixei um agradecimento a você no Fina Flor.

    beijos e bom domingo

    MM.

    ResponderExcluir
  9. O valor ao outro é o passo primordial para a convivência, mas vivendo em uma sociedade individualista é sempre o "eu" que se sobrepõe. Muitos pensam que valorizando outro negligenciamos o "eu", mas ocorre justamente o contrário. A sua leitura do texto "Herança" está perfeita. Abçs.

    ResponderExcluir
  10. Queridíssimo! Quantos conceitos, reflexões, visões, precisamos maturar em nosso interior antes que rompamos nossos casulos! De quanta arrogância e empáfia devemos nos libertar para que avancemos em passos seguros a um melhor entendimento do nosso redor. Excelentes observações! Um beijo, Deia

    ResponderExcluir
  11. Não foi à toa a escolha do nome do meu blog. E nem da minha única tatuagem - uma borboleta abaixo da nuca. A metamorfose traduz quem sou e o que desejo. E me obriga constantemente a olhar para o fato de que a nossa contagem cronológica do tempo não coincide com a vivência do tempo emocional - que é subjetiva. A maturidade e a prontidão simplesmente acontecem. Não há como forçar a Natureza. Nem a nossa, nem a de quem está ao nosso lado. :-)

    ResponderExcluir

Fique à vontade!
Os comentários têm a função precípua de precipitar a maturação da reflexão, do texto “apossado”. É um ponto de partida, sem o ponto de chegada. É o exercício da empatia no rompimento do isolacionismo, posto que, tudo está conectado. É a sua fala complementando a minha. Por isso mesmo fique à vontade para o diálogo: comentar, concordar, discordar, acordar...