quarta-feira, 30 de abril de 2014

Lobos e Avessos

Meus Rabiscos



É muito conhecida a metáfora dos dois lobos, divulgada amplamente na internet. Ela se parece muito com nossas escolhas, com nossas intempéries atitudes e, claro, confunde-se, o tempo todo, com cada um de nós, simples seres mortais. A metáfora é assim:


“Um velho avô disse ao seu neto, que veio a ele com raiva de um amigo, que lhe havia feito uma injustiça:

— Deixe-me contar-lhe uma história. Eu mesmo, algumas vezes, senti grande ódio daqueles que aprontaram tanto, sem qualquer arrependimento daquilo que fizeram. Todavia, o ódio corrói você, mas não fere seu inimigo. É o mesmo que tomar veneno, desejando que seu inimigo morra. Lutei muitas vezes contra estes sentimentos...

E ele continuou:

— É como se existissem dois lobos dentro de mim, numa luta constante. Um deles é bom e não magoa. Ele vive em harmonia com todos ao redor dele e não se ofende quando não se teve intenção de ofender. Ele só lutará quando for certo fazer isto. E da maneira correta. Mas, o outro lobo, ah! Este é cheio de raiva. Mesmo as pequeninas coisas o lançam num ataque de ira! Ele briga com todos, o tempo todo, sem qualquer motivo. Ele não pode pensar porque sua raiva e seu ódio são muito grandes. É uma raiva inútil, pois sua raiva não irá mudar coisa alguma! Algumas vezes é difícil conviver com estes dois lobos dentro de mim, pois ambos tentam dominar meu espírito.

O garoto olhou intensamente nos olhos de seu avô e perguntou:

— Qual deles vence, Vovô?

O Avô sorriu e respondeu baixinho:

— Aquele que eu alimento mais frequentemente".




Eu me deparo brigando com meus limites, com minhas escolhas. Ao longo dos dias cultuei valores, propaguei atitudes e extrapolei constructos. Reconstruí concepções, reformulei compreensões e uma vez mais, debato-me, numa incessante luta, com meus percalços limítrofes.


O aprendizado mais difícil é exatamente esse, o de revirar-se por completo, desnudar-se e, ante o espelho do cotidiano, deparar-se com o seu avesso.


A morada desse avesso apropria-se, de forma intangível, mas ao mesmo tempo de uma maneira eloquente, de suas incongruências inconfessas. São lobos soltos no tempo, com mandíbulas robustas e caninos afiados. Ao menor descuido se prontificam a vesti-lo noutra roupagem e chantageiam suas crenças, num abraço infindável à fragilidade exposta.


As unhas esfomeadas dilaceram o coração, tornando-o pateticamente poético e romantesco. A nova roupagem já começa a ditar as frases desconexas.


A volúpia do abraço mortífero já não reconhece quaisquer resistências. Aos poucos tudo é despedaçado e vorazmente consumido. O avesso vive. Prostitui o meu norte.


Entretanto, nessa incontida briga, a consciência reclama e chora cada pedacinho de utopia assentada na argamassa do abrigo esmorecendo. Afinal, o que mais alimentei na caminhada? O que, de fato, sustenta meus propósitos? E, por que no vacilo do tropeço, remexeram meu avesso?


É porque me descuidei. Permiti a solidão da dor. Ressenti as perdas. Não diligenciei minhas vicissitudes. Não auscultei minhas angústias. Não respeitei meus medos. Não acreditei nas minhas verdades extenuadamente vividas. Assim, frágil de amor próprio, combalido e atordoado, letargicamente perdido e ferido, assisto o meu avesso vestir-se para a festa. Vai comemorar meu vergonhoso fracasso.


Na briga, que persiste, um sopro de luz, um pequenino e tênue sopro de luz ainda faz respirar a alma inerte. Acesos, os olhos já não fogem da horrenda visão que o avesso impõe. A memória reconstrói forças. Na sofreguidão do abismo, as mãos já conseguem agarrar-se às histórias de cada uma das encruzilhadas vencidas, onde cada escolha redesenhou-me, de forma transformadora.  Impetuosamente, o que dilacerado estava, se ergue refeito. Na consciente fúria refuto os lobos carniceiros, dispo-me das roupas emprestadas e o instinto de sobrevivência faz recobrar a pulsação. É a minha metamorfose do renascimento.


Uma vez refeito, depois de tantas desacomodações, aquieto-me num novo aprendizado: a compreensão das minhas imperfeições. Desta feita, porém, sei que o outro lobo não morreu, apenas se afastou e escondido permanecerá. Com certeza, na ânsia de se fazer vivo, ele tentará se alimentar das migalhas que eu oferecer em cada ato, em cada gesto, em cada atitude... em cada escolha!


Agora cada passo dado rumo ao infinito já sabe a face do avesso, por isso mesmo é firme e constante. E cada pegada, largada na estrada, me assegura que os desencontros são pontes que constroem grandes encontros.  


Esse deve ser o propósito! Sempre!




Publicada originalmente em 12 de maio de 2010

sexta-feira, 25 de abril de 2014

A Enchente

Metáforas
Enchente

Certa ocasião, numa cidadezinha distante, ocorreu um grande temporal. Nunca chovera tanto naquele lugar. Foram dias e dias de chuva. O pequeno rio que cortava as ruas, agigantou-se, enorme se tornou e começou a devorar casas, inundando tudo sem a menor cerimônia.

Uma bondosa velhinha, muito religiosa, dessas beatas de pequenas cidades, recusava-se incessantemente a deixar sua casa, já invadida pela enchente. Teimava insistentemente e bravamente resistia. Os vizinhos, quase todos, passavam por sua casinha e diziam-lhe:

—Senhora! Vamos que a enchente vai inundar tudo e pode carregá-la. Vem com a gente. Deixe-nos ajudá-la!

Ela respondia sempre com a mesma feição no rosto:

—Não! Não vou sair daqui com ninguém! Deus vai me tirar daqui.

Todos insistiam e muito, mas nada adiantava. Ninguém conseguia retirá-la daquele lugar. E não podia-se dizer que era amor demasiado pela casa, era pura teimosia. Veio então o pessoal da guarda civil:

—Senhora! Vamos sair deste barraco que a enchente já está inundando toda a cidade. Aqui a senhora corre risco de vida.

            Ela dava sempre a mesma resposta:

—Não meus filhos! Deus vai me tirar daqui. 

A esta altura, a água já invadira sua casa e alcançava quase um metro. Veio a polícia do lugarejo:

—Senhora! Saia já desta casa, senão a senhora morrerá.

Ela nem ligou e voltou a responder:

—Eu amo a Deus e ele vai me tirar daqui. Só saio pelas mãos de Deus.

O corpo de bombeiros foi chamado e quando os valentes bombeiros se aproximaram da casa, num pequeno barco, constataram que a água já ultrapassava um metro de altura:

—Senhora! Não vê que a água já invadiu sua casa? Deixe-nos ajudá-la! Vamos! Dê-nos sua mão e suba no barco.

Ela, sentada em uma cadeira colocada em cima da mesa, nem mudou  a postura:

—Já disse que só saio daqui pelas mãos de Deus. Ele vai me ajudar.

Muitos outros apelos foram feitos e nada resolveu. Muitos outros tentaram e nada adiantou. Quando a água já ameaçava querer cobrir a casa da boa velhinha, o corpo de bombeiros, sensibilizado, não mediu esforços e mandou que um helicóptero recolhesse a boa velhinha. Posicionou-se bem próximo ao telhado da casa, que a esta altura já  abrigava a boa velhinha:

—Senhora! Por favor, deixe de tanta teimosia e venha. A senhora vai morrer se permanecer sentada neste telhado. A enchente ainda virá mais forte.

Ela, pacientemente falou:

—Já disse. Só saio daqui pelas mãos de Deus. Ele vai me ajudar.

Depois daquela última conversa, ninguém mais ouviu falar da boa velhinha. Mas, no céu, recebida pelo Senhor da Vida, ela pôs-se a questioná-lo:

—Como pode senhor?! Eu esperei tanto, confiei tanto, acreditei tanto e o senhor me deixou morrer?! Como pode Senhor?!  Como não apareceu?! Por que me deixou morrer sem me ajudar?! Por que não me salvou?!

Uma voz mansa, tranquila, bondosa e mágica se fez então ecoar:

—Minha filha! Tudo fiz para salvá-la. Mandei pessoas a persuadi-la. Pessoas para oferecerem-se em ajuda. Mandei autoridades. Mandei barco para retirá-la e olha, até mesmo um helicóptero você recusou.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Eu sei, mas não devia



Outros Autores
Olhar na janela
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente acostuma a morar em apartamento de  fundos e não ver outra vista que não as janelas ao  redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, se esquece do sol, esquece do ar, esquece da amplidão.


A gente se acostuma a acordar sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo de viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.


A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra. E aceitar a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja um número para os mortos. E aceitando os números , aceita a não acreditar nas negociações de paz. Não aceitando as negociações de paz, aceita ler todos os dias sobre a guerra, seus números e sua longa duração.


A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: Hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.


A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e necessita. E a lutar para ganhar com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.


A gente se acostuma a andar nas ruas e ver cartazes. A abrir as revistas e ler artigos. A ligar a televisão e assistir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos de consumo.

A gente se acostuma à poluição , às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar.  À morte lenta dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta por perto.


A gente se acostuma a  coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma  revolta lá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua o  resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se  no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem muito sono atrasado.


A gente se acostuma a não ralar na aspereza para preservar a pele. Se acostuma  para evitar feridas e sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.


A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e que se gasta de tanto acostumar. Se perde em si mesma.


A gente se acostuma a ser acostumado.
                               Marina Colasanti

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Congresso Feminista

Humor



E num Congresso Feminista, lotado, a primeira palestrante, Frida, veio da Alemanha. E tão logo pegou o microfone, começou a falar: 

- Um dia cheguei em casa e disse pro Fritz: Pode arrumar a porra desta casa, pode colocar o chucrute no fogo que eu não cozinho mais e se reclamar, pego os meus filhos , vou embora e te mando para a puta que pariu ! 

A audiência, entusiasmada, quis logo saber o que aconteceu e Frida contou: 

- No primeiro dia não vi nada, não vi nada no segundo dia, no terceiro cheguei em casa, tinha um prato de chucrute me esperando, a casa estava limpa, tudo brilhando, uma beleza ! 

A mulherada foi ao delírio: Heeeeeeeee!!!!!! 

Segunda palestrante, dos EUA, Jane: 

- Cheguei em casa, puta da cara, com a maior tensão pré-menstrual. Olhei pro Joe e já fui dizendo: Pode começar a preparar o hambúrguer, vai arrumando a casa que eu não quero nem saber ! E se não tiver tudo de acordo, pego minhas coisas, vou pra Califórnia e te mando pra puta que o pariu ! 

Galera, em uníssono: Daí...daí ... daí... daí.... 

- No primeiro dia, nada. Nada no segundo. No terceiro, cheguei em casa, tudo brilhando, um cheirinho de hambúrguer na grelha, maravilha!!! 

A mulherada delirando: Ehhhhhhhhh!!!!!! 

A terceira palestrante veio do Brasil varonil. Benedita, direto da favela da Rocinha, RJ, capital: 

- Cheguei no barraco, aquela merda. Uma zona. Fui logo dizendo. Ô, Tião, não quero nem saber. Vai ajeitando essa merda, coloca o feijão no fogo, vai arrumando a casa, bota o cachorro para fora ! Tô cheia, se não tirar esta bunda do sofá, te mando para puta que o pariu. 

Galera: Daí...daí ... daí... daí.... 

- Primeiro dia, num vi nada. Segundo, num vi nada. No terceiro dia, o meu olho começou a desinchar e já deu para ver um pouquinho....