terça-feira, 31 de maio de 2016

Além da Terra, além do Céu

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Além da Terra, além do Céu, 
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.

Carlos Drummond de Andrade 
 

terça-feira, 24 de maio de 2016

Escorregar é pecado!?





Cidadezinha do interior acontece de tudo. Numa dessas cidades, bem perdida no interiorzão de Minas, uma pacata população estava às voltas com alguns eventos da modernidade, como por exemplo, as relações extraconjugais.

 
E cidade pequena todo mundo dá notícia de tudo. Todo mundo sabe a vida de todo mundo! Sabia-se quem traia o marido e com quem e qual marido traía a esposa e com quem.
 
Com tantas incidências extraconjugais acontecendo, o padre, já velhinho, resolvera também inaugurar o novíssimo confessionário para as confissões individuais. A homilia, das missas do domingo, serviram para enfatizar os convites à "regeneração" dos cristãos.
E deu certo. Nas semanas seguintes as mulheres intensificaram a procura. E aí começou a acontecer um outro problema. Elas já iniciavam pelo pecado mais mortal. E diziam de forma escancarada:
 
— Seu padre, eu transei em traição, duas vezes nessa semana.
 
— Seu padre, eu "trepei", traindo, três vezes nessa semana.
 
Outras eram ainda mais explícitas, mas ao final, todas confessavam o pecado. Já os homens hesitavam. Uns poucos, bem poucos, confessaram as escapadelas. E assim se sucediam os relatos. Um após o outro, nos mesmos moldes.
 
O padre, extremamente conservador e pudico, resolveu que tais palavras não deveriam ser ditas ali. Assim, a cada mulher que o procurava para confessar-se, ele recomendava que, a partir daquele instante, ela apenas mencionasse que havia escorregado. Se escorregara uma, duas, três ou mais vezes, bastava que dissesse quantas vezes havia escorregado. Frisou bem a palavra escorregar. Insistiu nela.
 
Cidade do interior também tem essa facilidade de adaptação, de acostumar-se com as coisas mornas, se bem que isso não era nada morno. Mas as pessoas acostumaram-se com a expressão que o padre solicitara. E o tempo encarregou-se daquele costume. Estavam tão acostumados que a cidade toda já sabia.
 
O padre, cada dia mais idoso e doente, veio a falecer. Uma multidão compareceu,  pessoas de todos os credos, inclusive das cidades vizinhas, onde também  o padre era muito querido. E, logo na mesma semana, a diocese já designara um novo padre, recém ordenado, para assumir a paróquia.
 
Logo na chegada já fora informado que o atendimento às confissões se dava todos os dias, além das missas e visitas à zona rural. Mal o padre se posicionou no confessionário e já foi surpreendido:
 
— Seu padre, eu escorreguei três vezes essa semana.
 
— Mas minha filha, escorregar não é pecado.
 
— Não seu padre. É pecado sim. Me dá logo a minha penitência.
 
E assim sucederam-se inúmeras confissões. O padre, novato na cidade, decidiu que falaria com o prefeito sobre aquela situação. Ao longo dos dias observara as ruas mal calçadas, com pedras pontiagudas sobrando, buracos tomados por uma lama vermelha, prestes a tingir as roupas que ali repousassem. Becos, ruelas, chão batido, poeira... Definitivamente, a cidade precisaria ser melhor iluminada, assim as pessoas escorregariam menos. Foi o que pensou.
 
Ao procurar o prefeito, soube que estava em reunião com uma comitiva do governo, composta por deputados e secretários de Estado. E claro, todos os vereadores da cidade e cidades vizinhas também estavam no salão, numa confraternização. Ainda assim, foi convidado a entrar.
 
O prefeito, mesmo ressabiado, avistando-o, convidou para que se juntasse a todos. O padre, percebendo ali uma boa oportunidade para a conversa, puxou-o pelo braço e disse-lhe que precisava falar sobre as mulheres que andavam escorregando pelas ruas da cidade.
 
O prefeito, soltando altas risadas, não aguentou e chamou a atenção de todo mundo que ali estava. Era uma oportunidade que nenhum "politicozinho" perderia!
 
— Pessoal! Um minuto de atenção por favor! O padre, que acabou de chegar na cidade, disse que veio me procurar por estar preocupado com as mulheres que andam escorregando em nossas ruas.
 
E caíram todos na risada. Até mesmo os componentes da comitiva caíram na risada, pois  os "escorregões" foram, em outras confraternizações, assuntos de muitas e muitas piadas. Riram. E riram a valer!
 
Como não paravam de rir, o padre tomou o microfone que estava sobre o púlpito e começou a falar. E falava sério. E quanto mais sério, sem saber porque, mais risadas arrancava daquela plateia indomável.
 
— Senhor prefeito! Eu venho aqui com a maior das boas intenções, faço uma reivindicação justa e o senhor me trata assim?! As ruas dessa cidade são mesmo mal cuidadas, estão esburacadas, muito mal iluminadas. Isso é até um caso de saúde pública, pois implica em gastos com tratamentos, remédios e curativos! E o pior, senhor prefeito, é que esse problema tem afetado principalmente as mulheres.
 
Pronto! Aí é que as gargalhadas aumentaram de verdade! As pessoas já estavam vermelhas de tanto rir. Batiam palmas. Batiam na mesa! E riam, riam alto a valer.
O padre, já bravo, não se conteve. Era mesmo inadmissível e repugnante  o escárnio sofrido.
 
— Senhor prefeito! Não vou mais tocar nesse assunto. Isso é responsabilidade da Prefeitura. Mas veja bem o que vou lhe dizer, preste atenção: o senhor, como muitos dos senhores aqui presentes,  como muitos dos senhores vereadores, inclusive das cidades vizinhas... É, parece que o problema não pertence somente a esta cidade. Pois bem, todos vocês, ouviu senhor prefeito, todos correm um grande risco na própria família. Não vou relatar os casos que envolvem vereadores daqui e das outras cidades, que são muitos, mas o seu caso Prefeito, a sua esposa inclusive escorregou nas últimas três semanas. Só nesta semana já foram três escorregões! O senhor está avisado. E os senhores vereadores também!

Silêncio total

Conto adaptado

quinta-feira, 19 de maio de 2016

O anel




Metáfora
— Venho aqui, professor, porque me sinto tão pouca coisa, que não tenho forças para fazer nada. Dizem-me que não sirvo para nada, que não faço nada bem, que sou lerdo e muito idiota. Como posso melhorar? O que posso fazer para que me valorizem mais? 

O professor, sem olhá-lo, disse:
— Sinto muito meu jovem, mas não posso te ajudar, devo primeiro resolver o meu próprio problema. Talvez depois. 

E fazendo uma pausa, falou:
—  Se você me ajudasse, eu poderia resolver este problema com mais rapidez e depois talvez possa te ajudar.

—  C...claro, professor.  
Gaguejou o jovem, que se sentiu outra vez desvalorizado e hesitou em ajudar seu professor. O professor tirou um anel que usava no dedo pequeno e deu ao garoto e disse:
—  Monte no cavalo e vá até o mercado. Devo vender esse anel porquetenho que pagar uma dívida. É preciso que obtenhas pelo anel o máximo possível, mas não aceite menos que uma moeda de ouro. Vá e volte com a moeda o mais rápido possível. 
 
O jovem pegou o anel e partiu. Mal chegou ao mercado, começou a oferecer o anel aos mercadores. Eles olhavam com algum interesse, até quando o jovem dizia o quanto pretendia pelo anel. Quando o jovem mencionava uma moeda de ouro, alguns riam, outros saíam sem ao menos olhar para ele, mas só um velhinho foi amável a ponto de explicar que uma moeda de ouro era muito valiosa para comprar um anel. Tentando ajudar o jovem, chegaram a oferecer uma moeda de prata e uma xícara de cobre, mas o jovem seguia as instruções de não aceitar menos que uma moeda de ouro e recusava as ofertas. 

Depois de oferecer a joia a todos que passaram pelo mercado, abatido pelo fracasso, montou no cavalo e voltou. O jovem desejou ter uma moeda de ouro para que ele mesmo pudesse comprar o anel, assim livrando a preocupação de seu professor e poder então receber ajuda e conselhos. Entrou na casa e disse:
—  Professor, sinto muito, mas é impossível conseguir o que me pediu. Talvez pudesse conseguir 2 ou 3 moedas de prata, mas não acho que se possa enganar ninguém sobre o valor do anel. 

Num semblante de apaziguamento, contestou sorridente o mestre:
—  Importante o que disse, meu jovem.Devemos saber primeiro o valor do anel. Volte a montar no cavalo e vá até o joalheiro. Quem melhor para saber o valor exato do anel? Diga que quer vendê-lo e pergunte quanto ele te dá por ele. Mas não importa o quanto ele te ofereça, não o venda. Volte aqui com meu anel. 

O jovem foi até o joalheiro e lhe deu o anel para examinar. O joalheiro examinou-o com uma lupa, pesou-o e disse:
—  Diga ao seu professor, se ele quiser vender agora, não posso dar mais que 58 moedas de ouro pelo anel. 

O jovem, surpreso, exclamou:
—58 MOEDAS DE OURO!!! 

—  Sim, replicou o joalheiro, eu sei que com tempo poderia oferecer cerca de 70 moedas , mas se a venda é urgente... 

O jovem correu emocionado para a casa do professor para contar o que ocorreu.
—  Sente-se. 

Foi o que lhe disse o professor e, depois de ouvir tudo que o jovem lhe contou, argumentou:  
—Você é como esse anel, uma joia valiosa e única. E que só pode ser avaliada por um expert. Pensava que qualquer um podia descobrir o seu verdadeiro valor??? 

E dizendo isso voltou a colocar o anel no dedo.
—  Todos somos como esta joia. Valiosos e únicos e andamos pelos mercados da vida pretendendo que pessoas inexperientes nos valorizem