segunda-feira, 7 de junho de 2010

Insegurança "Masculina"


Cena do filme "A Guerra do Fogo"


Noite fria aquela. As nuvens fecharam a cara, lançaram olhares tenebrosos e com elas o movimento uivante do gélido vento. Pedia cama. Edredom de maciez convidativa. Aconchego dos corpos. Eu nem sabia, mas era aniversario  de casamento. Eu ficara durante o dia remexendo em papéis, relatórios a fazer e a data equivocada na cabeça.

Nada pior que isso: esquecer datas. O olhar fulminante passa a acompanhar cada movimento. Como se perguntas fossem feitas ininterruptamente. Será que ele não vai lembrar? Esses homens! Que importância dão às datas? Que falta de sensibilidade!

De repente, já desistindo da possibilidade do assunto ser retomado, finalmente confessa o incômodo: "você sabe que dia é hoje"? Eu, ainda mergulhado em datas equivocadas, prontamente respondi, sem a menor cerimônia: "ora, dia três".

A vermelhidão da face já me dava a entender. Não era. A ficha caiu. Como pude me esquecer? Que insensatez a minha! Quanta ausência de cumplicidade! 

Tempo então de refazer os enganos e de nada adiantava tentar explicar as confusões com datas. Melhor seria tentar reparar, com urgência. Sair para jantar. Era uma tentativa desesperada de compensar a frustração sentida.

Restaurante aconchegante. Costumávamos frequentá-lo em outros tempos. Um barzinho no canto, lugares mais acolhedores que outros. Mesas esparramadas. Famílias ocupando os pontos estratégicos. Não gosto do meio. Preciso ter ampla visibilidade de todo o movimento. Ali, no meio, era como se estivesse no centro da roda, onde todos os olhares passeavam. Não podia refugar. Qualquer desculpa seria imperdoável. Ouviria ao longo da semana toda sorte de lamentações. Resoluto, sem demonstrar incômodo, só restou escolher para qual lado daria as costas.

Azar o meu. Já sentado é que percebi um espelho envelhecido numa parte do balcão de atendimento. Isso não estava aí, eu pensei. Tarde demais. Precisava fazer valer o momento, valoriza-lo como merecia, independente das minhas insatisfações ou estorvos.

Para não olhar o espelho, precisava ficar meio de lado. Não, incômodo demais! isso não! Aí já seria exigir muito! O grande problema é que o espelho refletia a imagem de um casal acompanhado de um amigo. E, por mais que eu quisesse, meus olhos insistiam em passear pelo espelho. Não buscavam a mulher. Muito ao contrário. Eu não tinha olhos para mais ninguém. Precisava reparar um desacerto, compromisso inarredável.

Os olhares do homem acompanhado pressentiram ameaças. Elas não existiam, mas o espelho argumentava contrariamente. Maldito espelho! E os olhos não paravam de se mover em direção a ele. Por mais esforço que fizesse, ele estava ali, na minha frente, impassível. Impassível nada! Aquele espelho estava adorando a cena! Propunha maldades quando delas eu fugia. Precisava arranjar uma forma de me esquivar. O jeito foi buscar as imagens da televisão. Coisa mais “chinfrim”, logo pensei.

E, para meu maior espanto e contrariedade, ao buscar outros cenários fui eu quem passou a incomodar-se com olhares lançados à mesa. Num canto, um pouco escondido pela escassez de luz, havia um sujeito, barba e cabelos brancos, que não significavam idade avançada,  parecia insistir olhar em direção à minha mulher. Indignei-me! Cara folgado! Que falta de respeito! Pensava nisso e me lembrava do espelho. Certamente todo tipo de impropérios já me haviam sido destilados.

E esse duplo incômodo durou uma eternidade. Eu até já conseguia não olhar o espelho. O meu incômodo era maior. Precisava me concentrar nele. Dito e feito! Resolvi que devia vigiar mais de perto os olhares furtivos. Passei a fulminar o sujeito na penumbra em que se escondia. Por pouco não me levantara para perguntar-lhe o que havia perdido por ali.

E assim foi boa parte da noite. Jantamos, brindamos, sorrimos. Relembramos tempos idos. Passagens românticas, dolorosas e engraçadas. Havia conseguido amenizar o “bendito” esquecimento das datas. O melhor ainda estava por vir, pensava eu, já imaginando o edredom. Melhor então apressar os desejos. Pagar a conta. Agradecer e bater em retirada.

O sujeito ainda continuava lá, sorvendo seu whisky a conta gotas. O espelho? Já nem sabia que ele existia. Já não era perseguido pelo camarada, da outra mesa, com a mulher. Ele havia constatado que as intenções não se direcionavam àquele lugar. Quanto a mim, o problema ainda permanecia sem solução. Vez por outra eu pegava o sujeito parecendo lançar olhares suspeitos. Uma afronta!

Na saída do balcão de atendimento eu teria que passar por ele. Feito. Não resisti. Fechei a cara. Semblante compenetrado, amarrado. E sisudo impus minha voz. A mais forte e grossa que consegui. Olhei o “vovô”  e já fui logo cumprimentando, com toda a ironia e sarcasmo: "boa noite, tudo bem? Nos conhecemos de algum lugar"?

Aí me surpreendi mais ainda. O "cara", educadamente acenou que não. Meneou a cabeça e num relance se virou. Quase morri de vergonha! O "vovô" era estrábico ao extremo. Quando parecia me olhar na conversa, na verdade direcionava à porta. Esse sim, era um vesgo com propriedade! Já não dei continuidade à conversa. Apressei os passos e desapareci.

Já na volta, dei risadas da cena. Passara a noite fugindo de um olhar ciumento e perseguindo um outro invasor. Ao final, nada se revelou verdade. Ainda bem que a minha calmaria estava de plantão.

Já pensando no edredom, imaginando as cenas calientes, de sobressalto sou tomado por resquícios de um “machismo” que beirava à mais pueril insegurança. Absorto ainda nas cenas experimentadas, indagações perambularam incitando a ira. Seria mesmo o estrabismo, ou fui ludibriado? Coisa difícil perguntar à mulher. Mulheres não revelam, a tempo, tais ocorrências! Será?

Sem pestanejar, desferi logo o golpe. Ela, com toda calma, como se em hipótese alguma houvesse sido flertada, nega veementemente. E para comprovar, aperta o abraço, aconchega seu corpo ao meu e lasca logo um beijo. Pensei comigo: "sei não, carinho demais... amor demais..."  

Melhor optar pelo estrabismo!

14 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Estou morrendo de rir aqui! Por onde começar? Do começo, é claro! Esquecer a data de casamento? O mais grave dos pecados. Pena de morte, com direito a dormir na casinha do cachorro! AH, mas que bobagem a minha, já está morto mesmo, casinha do cachorro para quê?
    Vamos continuar? O vício de olhar o espelho - e culpar-se por dele não conseguir desviar os olhos. Atire a primeira pedra quem nunca se pegou fugindo de um reflexo?
    Não menos desafiante, descobrir um admirador na surdina, aguardando seu descuido para dar o bote. Taí. Essa eu gostei. Ciúme, após alguns anos de casados não tem preço. Se você precisava de um presente de aniversário, esse já veio embrulhado com laço de fita vermelho.
    Ah, acho que vou parando por aqui, pois minha amiga, pelo que você nos revelou, também descobriu o presente, e o retribuiu à altura...
    Excelente texto, muito bom ler algo tão bem escrito.
    Um abraço,
    Deia

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  3. É muito bom quando conseguimos exorcisar nossos fantasmas,
    Olha, esse espelho foi um coadjuvante irônico, e o senhor estrábico(?) um gênio..rs
    texto excelente, pois nos faz caminhar com disciplina seus vários humores,
    uma delícia de se ler!

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  4. Aleluia! Os casamentos felizes existem mesmo!

    Tanto que eu falo sobre o assunto e sou rotulada como imatura, romântica e conformada (demais).

    Gostei da descrição da cena do namoro, felicidades aos noivos! rs

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  5. Délirio!
    Quem nunca os viveu que atire a primeira pedra!!!
    Foi um enfrentamento bacana e o edredon saiu vencedor, pois assistiria de camarote, em pleno embate, o amor vencer!

    Adorei suas belas palavras, Gilmar.

    Vou te seguir bem de pertinho para presencias mais cenas desse tipo. Belas e temperadas de amor...♥♥

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  6. Como não rir desse texto fabuloso...
    Gilmar, em pensar que junto à culpa vem um pacote de paranóias...rs Isso que é envolvimento afetivo... Sim, rs, melhor deixar mesmo o edredom de lado, depois desse embaraço todo e, só aproveitar os prazeres da noite, sozinhos...

    Beijos,

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  7. Gilmar
    Muito boa história. Que insegurança, que mente que não para. Acho que o melhor é parar de imaginar coisas e sentir e vê o que está ao seu lado.
    Voltarei para ler a Metamoforse, mas na volta do trabalho.
    Beijos

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  8. Olá Gilmar!
    Vim agradecer a sua visita e mais o comentário.
    E aproveitei e li este bonito texto do principio ao fim sem pestanejar tampouco, gostei de cada palavra.

    Um abraço,
    José.

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  9. Olá, Gilmar
    Gostei de que usasse a palavra mágica: cumplicidade... SEM ELA NÃO DÁ...
    BEM, ESTOU ESPERANDO VC na Blogagem Coletiva Espiritual com grande expectavita... seja sempre bem-vindo!
    Entretanto, fique à vontade... sei esperar e compreender o motivo das pessoas que relutam ou pensam muito antes de agir... Discernimento é sempre bom!
    Vamos, coragem, entre na roda com a gente e nos fará crescer com a partilha de experiência pessoal...
    Quem sabe até não iria ajudar vc a se rever e aos seus conceitos na área... bem como fazer de novo a experiência com o Mestre...
    Abraços e muita paz interior pra vc e os seus entes queridos.

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  10. ah, mas e se ela realmente estivesse sendo paquerada? rs*

    eu nem ligo se olham para o meu amado, é só não se aproximar [na minha presença] porque aí acho falta de respeito, rs*

    mas faltou a melhor parte, aqui: a do edredom, rs*

    beijocas

    MM.

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  11. rsss Muito legal, gostei demais.
    Mas que cisma sem fim, até eu sofri com o tal espelho que tanto falou. rss
    Bjs! Amigo.
    Lu

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  12. Gil! Adorei! Continue escrevendo

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  13. O "terceiro" era estrábico mas o protagonista que quase perdeu o foco! rsrsrs

    Sou suspeita em relação a essa coisa de datas. São poucas as que valorizo e não é incomum que eu as esqueça. Nesse ponto eu me assemelharia ao tal comportamento masculino...

    Muito bom o texto!

    Bjos!

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  14. Parabéns pela sua sensibilidade. Muito me encanta.

    Decepção é quando não se lembra e ao ser lembrado responde: e dai?... sem resposta, o nó na garganta não dá tempo de responder. É dia de reunião de familia, portanto, festa. A familia grande prepara uma surpresa para o casal. E lá pelas ohora colocam uma valsa para o casal. Afinal são 25 anos... é merecido.
    Ele, olha assustado e cochicha no ouvido dela: que palhaçada é essa? eu não vou participar disso e sai deixando-a sozinha com todos olhando. Os irmãos, para descontrair e tirá-la daquela situação, estende-lhe a mão e diz: Vamos dançar... e assim, rodopia no salão tentando esconder as lágrimas e querendo fugir daquela situação. Fica completamente aturdida e sem ação. A familia num gesto de quem nada percebeu, nada fala, apenas tentam fazê-la sorrir e amenizar aquela dor e aquele desencanto.

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