domingo, 2 de maio de 2010

Olhares da Janela


Texto para a Blogagem Coletiva sugerido pelo Espaço Aberto


Do alto, olhares entremeados por grades, vislumbram movimentos frenéticos da vida que corre lá fora. Transeuntes apressados, passos largos, outros tantos desleixados, mornos... Buzinas infernais, ronco de motores, freios... Gente que vai, gente que volta. Vidas que desfilam, anonimamente, ante olhares já estupefatos.

Nesse caos, de intermitentes sons, um silêncio prende a atenção. Lá está ela. A mulher sozinha, em seus diálogos imaginários e gestos intermináveis. Com uma pequena faca na mão,ou algo parecido, aos poucos o mato é desbastado. Célere e incansável, ela faz os galhos e ramos se desprenderem da cerca e ao chão se entregarem. E ali, paralisados, ao calor do sol escaldante, desfacelem.

E a mulher, de roupas imundas, rasgadas no incansável uso, não abre mão da sua touca vermelha. É seu protetor solar que enfeita a face já maltratada pelo tempo...

Dizem que se chama Lúcia. Ali, naquela rua, sua casa imaginária é limpa, às custas de uma velha vassoura carcomida, já quase aposentada. Seu fogão, sem trempes, não sabe o que é uma panela... acostumou-se à velha latinha, dessas de embalagens descartáveis, todavia, o fogo permanece leal. Não faz escolhas. Nem predileção tem. O que será cozinhado? A “farta” refeição cabe ali, na minúscula vasilha, colorida de preto por conta de tanto fogo aturado.

Vez por outra eu já a vi pentear, incessantemente, os emaranhados fios de cabelo, que multiplicam o volume de forma exuberante. Ela os detém, amarra uma fita, os faz aquietarem-se à força. Esse gestual é feito sempre ao cair da noite, quando a escuridão invade-lhe a “casa” e ela precisa buscar um teto que faça diminuir o frio... Nada melhor que o aconchego sob o viaduto da Amazonas. O cheiro é insuportável, bem diferente de sua “casa” tão limpa... Mas, resignada, ali se refaz para um novo dia.


De longe eu imagino a voz e as questões discutidas... Com quem será ela conversa? O que diz? E por que tanto gesticula? Cessa os movimentos... novamente gesticula, ora com uma mão, ora com a outra... retoma a “capina” daquela cerca de terreno abandonado. Uma trilha de ramos e galhos jazidos demarcam o extenuante labor.

Quem será aquela mulher?! Em qual encruzilhada, na estrada, seus sonhos foram perdidos? Qual foi o desencontro que roubou-lhe a sanidade? Será que aprendeu a driblar a solidão? Que laços afetivos rompeu ou até construiu?




Não resisto. Da janela mesmo eu tiro uma fotografia daquela cena. E, esse pontinho, longe, aí na  foto, é ela, a Lúcia. A foto espelha bem a invisibilidade social a que se submete aquela mulher... Ou que nós, que emprestamos apenas os olhares curiosos, a fazemos submeter-se.

E agora? Serei invasivo se mudar-lhe a escolha? Nada a fazer... O Serviço Social bem que tentou... Ela, intrépida e resoluta, permanece firme no seu propósito de manter-se fiel à sua escolha, aos seus diálogos, à sua “casa” e à incessante “capina”.

Então, nada me resta senão olhar e, quem sabe, aprender um pouco mais sobre tantas e tantas escolhas do cotidiano.

14 comentários:

  1. Olá Gilmar...são tantas Lúcias espalhadas por esse nosso Brasil, que pode´ramos fazer um albúm extenso de fotos.
    Algumas vezes ajudar não basta, pois a pessoa já escolheu a vida que quer ter, isso acontece, não existe um motivo para querer mudar. E quando isso acontece, nos basta mesmo olhar e tentar compreender e até ajudar no pouco que podemos.
    Com certeza ela tem uma história, uma fronteira que delimitou sua vida entre a sanidade e a perda da mesma.
    Obrigado por sua participação amigo...
    Um abraço na alma

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  2. Que linda essa história, Gilmar.
    Quem dera fosse possível podermos ajudar todas as Lúcias e suas famílias por aí...
    Muito emocionante mesmo o seu post!
    Parabéns!

    Muito obrigada por participar com a gente. Beijo grande!

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  3. Texto lindíssimo. Gostei muito!
    Vi seu nome na lista de participantes desta 2a blogagem coletiva e não resisti a vir conhecê-lo!
    Valeu a pena!
    Beijos, flores e muitos sorrisos!

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  4. Posso dizer que todo este texto é simplesmente Perfeito?
    Eu gosto, quando há palavras que se entrelaçam e nos levam de viagem durante todo o caminho... Aprofundando-nos e aconchegando em cada letra que se atravessa sobre o nosso olhar...


    E quanto ao meu texto, sabe que todos aqueles que alguma vez sentiram saudade, alguma vez viveram um pouco das suas vidas e despertaram sobre imperfeitas harmonias, criando uma nova nota a cada passo que se dá...

    Todas essas vezes, sempre crescemos e reflectimos melhor, vivendo as palavras dos outros quando são vividas de forma semelhante...

    E quando temos retratos inacabados, sempre continuaremos a traçar novas cores, novos horizontes sobre a tela... E a chave está na evolução que tudo isso nos traz!

    Um abraço! Bem vindo ao espaço aberto... Que muitas mãos se unam e desencadeiem sorrisos!

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  5. Olá, Gilmar
    Também estou participando e achando ótimo ver tanta expressão maravilhosa que sai do interior do ser humano...
    Pena que a mídia não divulgue tanto o Bem e o Amor!
    Porém fazemos a nossa parte compartilhando o nosso coração com os demais pela Net...
    Seu jeito de fotografar e explicar sua imagem foi profundo demais.
    Quem tem olhos para ver, veja!!!
    Obrigado por nos enriquecer.
    Abraços faternos

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  6. GIlmar, confesso que, ao aqui chegar, fui procurar em primeiro lugar a foto - então desci todo o seu texto até encontrá-la. Olhei, olhei, olhei... e nada vi. Subi o cursor e iniciei a leitura, pensando, o que será que ele quis contar com essa foto? Foi quando pude "enxergar" Lúcia. E são tantas, todos os dias nos nossos mais variados caminhos. Ficam, como você mesmo disse, invisíveis. Excelente narrativa! Estou lhe seguindo! Um beijo, Deia

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  7. Gilmar,
    gostei muito,o registro através de uma foto,é a imortalidade de um momento,e com um poema,imortalizamos a alma.
    Boas energias,
    Mari

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  8. Olá Gilmar...

    Obrigado pela visita e também pela sua bela participação.

    Sua postagem me emocionou...fiquei imaginando quantas pessoas, quantas lúcias existem e ninguém consegue tranformá-las em Ester.

    Deixo aqui meu abraço e tenha um belissimo fim de semana.

    Deus esteja sempre contigo.

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  9. Vim retribuir sua visita ao Rabiscos e encontro um texto emocionante e real.
    Serei repetitiva, quantas Lúcias meu querido estão espalhadas por todos os lugares, mas muitas vezes não querem ajuda, sua escolha foi feita e pra elas é um ponto final.

    Parabéns pela participação.

    Tenha uma linda noite, um beijo no ♥

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  10. Vim conferir sua participação na blogagem coletiva, adorei sua postagem e foto, parabéns

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  11. A foto realmente diz tudo sobre o texto. Me atrevo a dizer que são uma coisa só nesse cotidiano. Não vemos, mas sempre escrevemos sobre!

    até mais.
    Jota Cê

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  12. Gilmar,
    Sua percepção com certeza não a deixou invisível, ao menos para nós, nessa pressa desenfreada da vida.
    Excelente participação.
    Beijos Tempestuosos!

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  13. Muito bonita e sensivel sua postagem. A foto e otexto são cheios de calor humano, apesar do terrivel desterro social da Lucia.
    beijos

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  14. Gilmar
    Tocastes no assunto que muitos vivenciam e não fazem nada. Só nos resta olhar, como você, da janela e acompanhar o caminhar desse mundo ilusório e quem sabe vê-la chegar ao final dessa caminhada com um sorriso nos lábios.
    Beijos

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