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"Lobos", de Pedro Serra |
É muito conhecida a metáfora dos dois lobos, divulgada amplamente na internet. Ela se parece muito com nossas escolhas, com nossas intempéries atitudes e, claro, confunde-se, o tempo todo, com cada um de nós, simples seres mortais. A metáfora é assim:
“Um velho avô disse ao seu neto, que veio a ele com raiva de um amigo, que lhe havia feito uma injustiça:
— Deixe-me contar-lhe uma história. Eu mesmo, algumas vezes, senti grande ódio daqueles que aprontaram tanto, sem qualquer arrependimento daquilo que fizeram. Todavia, o ódio corrói você, mas não fere seu inimigo. É o mesmo que tomar veneno, desejando que seu inimigo morra. Lutei muitas vezes contra estes sentimentos...
E ele continuou:
— É como se existissem dois lobos dentro de mim, numa luta constante. Um deles é bom e não magoa. Ele vive em harmonia com todos ao redor dele e não se ofende quando não se teve intenção de ofender. Ele só lutará quando for certo fazer isto. E da maneira correta. Mas, o outro lobo, ah! Este é cheio de raiva. Mesmo as pequeninas coisas o lançam num ataque de ira! Ele briga com todos, o tempo todo, sem qualquer motivo. Ele não pode pensar porque sua raiva e seu ódio são muito grandes. É uma raiva inútil, pois sua raiva não irá mudar coisa alguma! Algumas vezes é difícil conviver com estes dois lobos dentro de mim, pois ambos tentam dominar meu espírito.
O garoto olhou intensamente nos olhos de seu avô e perguntou:
— Qual deles vence, Vovô?
O Avô sorriu e respondeu baixinho:
— Aquele que eu alimento mais freqüentemente".
Eu me deparo brigando com meus limites, com minhas escolhas. Ao longo dos dias cultuei valores, propaguei atitudes e extrapolei constructos. Reconstruí concepções, reformulei compreensões e uma vez mais, debato-me, numa incessante luta, com meus percalços limítrofes.
O aprendizado mais difícil é exatamente esse, o de revirar-se por completo, desnudar-se e, ante o espelho do cotidiano, deparar-se com o seu avesso.
A morada desse avesso apropria-se, de forma intangível, mas ao mesmo tempo de uma maneira eloquente, de suas incongruências inconfessas. São lobos soltos no tempo, com mandíbulas robustas e caninos afiados. Ao menor descuido se prontificam a vesti-lo noutra roupagem e chantageiam suas crenças, num abraço infindável à fragilidade exposta.
As unhas esfomeadas dilaceram o coração, tornando-o pateticamente poético e romantesco. A nova roupagem já começa a ditar as frases desconexas.
A volúpia do abraço mortífero já não reconhece quaisquer resistências. Aos poucos tudo é despedaçado e vorazmente consumido. O avesso vive. Prostitui o meu norte.
Entretanto, nessa incontida briga, a consciência reclama e chora cada pedacinho de utopia assentada na argamassa do abrigo esmorecendo. Afinal, o que mais alimentei na caminhada? O que, de fato, sustenta meus propósitos? E, por que no vacilo do tropeço, remexeram meu avesso?
É porque me descuidei. Permiti a solidão da dor. Ressenti as perdas. Não diligenciei minhas vicissitudes. Não auscultei minhas angústias. Não respeitei meus medos. Não acreditei nas minhas verdades extenuadamente vividas. Assim, frágil de amor próprio, combalido e atordoado, letargicamente perdido e ferido, assisto o meu avesso vestir-se para a festa. Vai comemorar meu vergonhoso fracasso.
Na briga, que persiste, um sopro de luz, um pequenino e tênue sopro de luz ainda faz respirar a alma inerte. Acesos, os olhos já não fogem da horrenda visão que o avesso impõe. A memória reconstrói forças. Na sofreguidão do abismo, as mãos já conseguem agarrar-se às histórias de cada uma das encruzilhadas vencidas, onde cada escolha redesenhou-me, de forma transformadora. Impetuosamente, o que dilacerado estava, se ergue refeito. Na consciente fúria refuto os lobos carniceiros, dispo-me das roupas emprestadas e o instinto de sobrevivência faz recobrar a pulsação. É a minha metamorfose do renascimento.
Uma vez refeito, depois de tantas desacomodações, aquieto-me num novo aprendizado: a compreensão das minhas imperfeições. Desta feita, porém, sei que o outro lobo não morreu, apenas se afastou e escondido permanecerá. Com certeza, na ânsia de se fazer vivo, ele tentará se alimentar das migalhas que eu oferecer em cada ato, em cada gesto, em cada atitude... em cada escolha!
Agora cada passo dado rumo ao infinito já sabe a face do avesso, por isso mesmo é firme e constante. E cada pegada, largada na estrada, me assegura que os desencontros são pontes que constroem grandes encontros.
Esse deve ser o propósito! Sempre!
ai, querido, eu vivo em constante guerra com meus lobos, também... com minhas escolhas, com o que me deixo perder tendo em vista o que posso ganhar... trata-se de um exercício diário.
ResponderExcluirbeijos e obrigada por sua gentil visita, volte sempre que quiser
MM.
Apesar de você citar está metáfora dos dois lobos como algo amplamente difundido na internet, eu ainda não havia tido o prazer de ler. Achei algo de Rubem Alves nela. Refiro-me ao tema e ao estilo. Gostaria de saber quem foi o autor. Foi tão bem concluída.
ResponderExcluirGilmar, você lida muito bem com as palavras, coloca muito bem as frases e não se incomoda em expor-se.
Gostei muito do conjunto da postagem. Parabéns!
Abraço grato do Jefhcardoso