sábado, 16 de janeiro de 2016

Contramão

Foto: "Em contramão", de Francisco Araújo
Hoje resgato um texto bem antigo.  Quando cursava Pedagogia, editava um "jornalzinho" mensal, o "Pirracinha", que era uma forma de brincar com a turma e costurar amizades. Vez por outra também resolvia "desabafar" os traumas acadêmicos ou as incongruências vivenciadas, como é o caso em questão. Embora o texto tenha tais conotações, ele permite extrapolações, basta que em lugar da "faculdade" se escolha outros lugares ou outras possibilidades: emprego qualquer, ambiente qualquer, profissão qualquer, etc. Assim outras reflexões serão permitidas.


Inicie sua vida acadêmica numa instituição qualquer, fazendo um curso qualquer. Não importa o sonho! Procure o que parecer mais fácil, se houver. Ignore totalmente os desejos, ideais e convicções, isso só complica. Pague caro, estude pouco, aproveite o mínimo possível. Não beba nunca de qualquer “saber” que lhe for oferecido. Pode estar contaminado. Recuse, se for fácil. Depois espalhe por aí que o ensino é de péssima qualidade. Narre com riqueza de detalhes o rigor, a ausência de comprometimento, o exacerbado "mandonismo" a que foi submetido. Mas... faça isso com cuidado, para não parecer aos olhos dos outros que é falta de bom senso. Não polemize. Apenas relate o que sua "imaginação" permite  ver.
 

Procure nunca demonstrar que o seu conhecimento sofreu alterações e reconstruções, que algo se aprendeu.  É que, na verdade, ninguém precisa mesmo saber disso. Procure falar somente das grotescas falhas e erros, como se elas nunca pudessem ser corrigidos, como se nada reclamasse cooperação. 

Demonstre coragem para falar de peito aberto, grite o mais alto que puder, contra o poder que você enxerga, contra o autoritarismo que você sente na pele, contra o sistema que lhe é imposto,  contra tudo e contra todos. Não olhe nunca para dentro de si mesmo, é perigoso demais. Há monstros e fantasmas soltos no tempo, loucos para se libertarem. Não escute a voz da razão, ela fere muito, às vezes, e nem sempre é compreendida. Não ouse participar de nada, não dê a menor colaboração, você pode passar por puxa-saco e isso seria horrível para a sua reputação, afinal,  não há porque "pagar mico". 

Rebata, com veemência, todas as críticas, pois você tem sempre razão, o outro  é apenas o outro. Rebata sempre, senão poderão pensar que é a sua incompetência que se expõe. 

Critique o professor,  ele é a extensão do sistema. Diga que ele  é fraco e despreparado, que não passa de um classificador de estigmas sociais. Entretanto,  faça isso só no cochicho, de forma velada, senão ele o perseguirá. Não dialogue. Jamais permita qualquer mediação. Nunca olhe no olho, é difícil dizer verdades olhando no olho. Ouvir então, é bem pior. 

Em todo e qualquer ambiente que frequentar, diga sempre o quanto é ruim o lugar onde você estuda e o quanto você paga. É claro que você não vai passar nenhuma ideia de masoquismo ou coisa parecida, é só para perceberem que, para você, dinheiro não tem tanta importância assim. Afinal, educação só vale a pena ser discutida quando se tratar de despesas, reclamações, gastos, preços, poder — nunca  como investimento. Nunca... 

Faça de cada prova ou exercício uma corrida desenfreada pela nota, reforce essa ideia sempre que puder, afinal, ao final o que interessa é o diploma, um canudo de papel. A sua competência é bem maior do que isso. Mas... será que todos sabem disso? Será que a sua fala permite a mágica da compreensão ao contrário, ao avesso? E suas ações? São perfeitas, num profissional perfeito? Isso é o que se pode afirmar? 

Faça sim, tudo isso e sem parar para pensar, muito menos permitir-se à reflexão. Seria um grande erro. A imbecilidade precisa resistir à transformação da humanidade. Quem sabe não seja você o  porta-voz  dessa moderna e maníaca tendência idiossincrática? Espalhe tudo isso! 

Depois se regozije ao receber um título honorário de imbecil. Ninguém ousará discutir o seu merecimento. 

Mais tarde, não se arrependa  de ser hostilizado, pois no mundo lá fora, ninguém goza de tamanha   e “palerma” benevolência a ponto de lhe conceder espaço,  oportunidade e emprego, só para mostrar que você é uma exceção; que você é muito... muito diferente. 

Fale mal, distorça verdades, abomine o nome da instituição, ridicularize o máximo que puder. Depois não se iluda quando o fulminarem com olhares "estranhos",  pois em verdade estarão vendo o que você falou,  encarnado na sua própria essência e no seu fazer. 

Só você não percebeu ainda que "Escola" não é fábrica de profissionais robotizados, é apenas um lugar onde se aprende, onde uma porta se abre ao infinito. E lá fora não existem muletas e nem escoras, é só você e o mundo; é só você e seu caminho. O compromisso com seu sucesso só dependerá de você, do seu esforço, do seu fazer,  do seu aprender  e de ninguém mais. 

Caso contrário, abra a porta e deixe a vida passar em frente... Acomode-se no tempo e submeta-se ao jugo da realidade  que se lhe apresentar. Afinal, a sua melhor recompensa é tão somente ser sombra, que nunca brilha ou aparece. É ser presença ofuscada, pedinte da boa vontade e da  capacidade do outro, que agora já é alguém.
 

Então sorria. É seu destino: sorrir a máscara da vergonha.
Publicado originalmente em fevereiro de 1997 - Pirracinha nº 14

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