Somos mais ou menos assim. Somente aquilo que nos toma de assalto nos faz gritar e pular. Aquilo que nos sequestra a paz e violenta nossa boa índole, a inocente confiabilidade nos outros.
Em muito nos parecemos com a metáfora do sapo escaldado, da qual Peter Senge faz uso na “Quinta Disciplina”. É que, se colocarmos um sapo numa panela de água fervendo, ele tentará sair de qualquer forma, não vai se aquietar um só instante e tentará, por todos os meios, pular fora. Todavia, se colocarmos água fresca, numa temperatura agradável, ele simplesmente não fará nada. Vai ficar quietinho. Vai adorar a paz do aconchego.E se acendermos o fogo sob a panela com água fresca, onde se acomoda o sapo e aumentarmos gradativamente a temperatura, ainda assim, ele continuará lá. E mais, ficará quietinho, como quem gosta do que recebe. Quanto mais a temperatura subir, mais ele continuará estático. Sem poder de reação. Quanto mais a temperatura aumentar, mais ainda o sapo vai calar-se, até que, escaldado, cozido, fenecerá com a mesma empáfia de sua acomodação. O mecanismo interno, que responde pela detecção de ameaças à sua sobrevivência é regulado apenas para identificar mudanças bruscas. Súbitas alterações. O sapo é inepto às ameaças graduais.
Quantas vezes e em tantas circunstâncias, também nós, meros mortais, criamos o hábito da plena quietude. Numa ilusão de ótica, tudo parece calmaria no mundo que mora lá fora. Entretanto, ao calor da vida, dos desencontros, tropeços, sofrimentos doídos, relações rasgadas e desapontamentos de toda sorte, essa mesma quietude faz abrir uma lacuna, uma grande distância. Já não vemos nada. Não enxergamos nada. Não escutamos nada. Somos consumidos, aos poucos, por esse mesmo mundo, do qual esquecemos fazer parte.
Criamos o hábito da acomodação nos pequenos e diferentes mundos, ricos em ausência de criticidade, vazios em consciência cidadã e humanística. Por vezes somos também admoestados a permanecer no mais absoluto silêncio, quando as poderosas mídias, com suas hipocrisias, bairrismos e idiossincrasias, faz o convencimento do "jeito certo" que cabe a cada um. É a submissão ao escárnio da “massa”, falida em vontade e autoestima... Zombeteiros de plantão, por vezes somos levados a acreditar, com fé inarredável, de que a verdade vem sempre de outra direção, é sempre soprada por outros ventos. E, na cegueira de abismos emocionais, ignoramos o sublime livre arbítrio a que temos direito exercer.
Marina Colasanti fala do quanto a gente se acostuma às coisas. A gente se acostuma ao cansaço do cotidiano; a pagar mais pelo que se quer; a travar batalhas sem fim, para ganhar o pão de cada dia, afinal os sonhos têm preços. “... A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma".
Feito o sapo escaldado na aconchegante água morna, quanto mais a voz se cala, não se sente mais o fogo brando... A gente teima em "empurrar com a barriga" os desconfortos a que somos submetidos, porque assim permitimos... E sem perceber, aos poucos desfacelemos.
Penso que o estágio adequado é o de inconformismo. É preciso aprender a dizer não, quando a vontade é de dizer não. É preciso aprender a dar passos em direção oposta, a retroceder dois passos e avançar apenas um...
Não é tarefa fácil a rebeldia. Não é decisão fácil a oposição. E as discordâncias não podem significar uma mera bandeira de resistência. Não se trata de “pintar a cara” e estabelecer mais um rótulo. É, antes de tudo, uma questão de dignidade. Trata-se da não aceitação da vantagem fácil. Da recusa ao egocentrismo mesquinho. Trata-se da crença na ética. Trata-se de enxergar, sem o rubor da vergonha, a mesma face no espelho, todos os dias ao acordar.
Não é uma questão de acolher conceitos impositivos ou habilmente incutidos. Trata-se do hábito de cultivar o discernimento e a criticidade. Não é a atitude da conciliação passiva, submissa e cabisbaixa ante o domínio da eloqüência dos que se vestem de poder, dos travestidos de bondade e serventia. Trata-se de refutar, com a mais cristalina das vontades, a opulência de moedas saqueadas na exclusão social. Trata-se de educar-se na retidão e, sobretudo, de ser leal a si mesmo. Trata-se da recusa intensa, indecente até se for preciso, em não tolerar ser fantoche em qualquer que seja o palco. Trata-se de não permitir ser cozido vivo, não ser levado à morte, ao imobilismo estratégico e vil. Trata-se de escolher a vida. Trata-se de viver, no sentido mais intenso e completo que o verbo permitir.
Cabe aqui resgatar uma fala providencial da Elenita: “Não se trata do tamanho do desafio, se trata do seu tamanho. Ou você é uma pessoa que se deixa deter ou é uma pessoa que não se deixa deter. A escolha é sua. Pensamentos conduzem a sentimentos, sentimentos conduzem a ações e ações conduzem a resultados”.
O hábito pode tornar-se aceitação passiva do que não pode mais ser tolerado.
Fernando Pessoa
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Olá Gilmar!
ResponderExcluirObrigada pela visita em meu blog, vim retribuir, e gostei dos seus escritos, voltarei para ler com mais calma,
Abraços poéticos,
Ester
Olá, Gilmar.
ResponderExcluirAcho que este texto "merecia" um livro... Com duas ressalvas (à minha afirmação, não às suas): o merecimento pode ser considerado um elogio? Tranformar um conjunto de argumentos, tão perfeitamente dispostos como estão aqui os seus, num livro seria sinônimo de reconhecimento?
Acho que uma das melhores ideias que você já deve ter tido na vida foi a criação de um blog, porque realmente você p r e c i s a escrever. Acredito, neste momento com o entusiasmo retido no meu interior em consequência da leitura de um texto extramamente qualificado ao qual tive acesso gratuitamente, que o "mundo virtual" está mesmo carente de um apoio retórico como o seu.
Seguindo seu conselho (de oposição ao conformismo), vou tentar não mais digerir pasivamente textos vazios de opinião crítica e pobres de coerência. Andava muito conformada... Obrigada por recordar-me de que ter opinião crítica "Trata-se da recusa intensa (...) indecente até se for preciso, em não tolerar ser fantoche em qualquer que seja o palco."
Um abraço,
Michelle
Gilmar,
ResponderExcluirJá leu a minha resposta ao seu comentário feito no meu blog no texto de 25/05/10? É disso que estou falando: pessoas que escrevem lindamente, têm muito a dizer e não escrevem em forma de desabafo - mas fundamentando seu discurso e falando para um público. Exatamente o que vc fez neste texto. ;-)
Como vc tem me visitado, nem preciso te dizer que concordo com cada vírgula da argumentação presente em seu texto, né? Afinal, é mais ou menos desta forma que eu vivo e é esse tipo de consciência que eu defendo.
Só trazendo um testemunho: realmente não é nada fácil adotar essa postura. E nem sempre isso é uma escolha, tem gente que simplesmente "nasce" assim. E enfrenta muitos percalços ao longo do caminho por ser "diferente". Difícil adaptar-se a um mundo que, a todo instante, insiste em te cozinhar vivo. Mas sucumbir não é uma opção pra mim. Porque eu sei que a dor de perder a si mesmo é bem maior do que a de lidar com a dificuldade de ser diferente.
Obrigada pelas suas palavras tão carinhosas no meu blog. De verdade. E sinta-se à vontade para comentar quantas vezes quiser.
Beijos!
Gostei muito desse espaço, vou voltar mais vezes! Beijos!
ResponderExcluirMuito bom aqui!
ResponderExcluirabração
Caro Gilmar, vim agradecer-te pela visita ao meu blog... Gostei do teu também, e dos escritos. voltarei com mais calma para lê-los. Pincelei, deixarei a tinta fresca e mais tarde volto para dar uma segunda mão!.
ResponderExcluirAbraços meu amigo!