Meus Rabiscos
Cidade do interior tem essa coisa de todo mundo conhecer todo mundo. Às vezes é muito bom, facilita a solidariedade, noutras tantas, pode provocar alguns estragos irreparáveis.
Dia desses, um camarada resolveu dar uma "escapulida" à tarde. O comércio estava parado mesmo, sem qualquer movimento. Recomendou à balconista que se o procurassem, estaria na cidade vizinha, negociando algumas mercadorias para a loja. Correu até o pequeno banheiro, deu uma arranjada no cabelo, pincelou com o dedo algumas gotas de perfume, discou um número no celular e combinou a festa.
Separado, há alguns anos, vivia sua solteirice ao extremo. Nada de compromissos sérios. Valia experimentar sensações que imaginava estarem apagadas. Que nada! Renascera para a vida. Vivia, nas rodas de amigos, com largos sorrisos e muita prosa boa. Era um alívio não se obrigar a certas tramas matrimoniais.
Pouco tempo depois já estacionava o carro numa das vagas da suite 115, do motel "Êxtase". Curioso ao extremo, reparou, por entre a fresta da "portinhola" de lona, o veículo que estava estacionado na suite ao lado. Não era um carro comum, por isso a curiosidade foi aguçada. Abriu um pouco mais, para verificar o modelo. Haviam no máximo uns cinco daqueles na cidade e, como era fissurado em carros, já identificou, de pronto, os proprietários.
Enumerou, ali mesmo os donos, sempre se perguntando se seria ou não.
—Será o Bartolomeu, o médico obstetra? O Carlúcio não pode ser, ele está na fábrica agora, passei por ele há pouco. O prefeito? Seria o prefeito? E se fosse o Magno, o amigo e pastor? Não! Ele era correto demais! Só podia ser então o Marcão! Esse é um mulherengo inveterado, casado, mas não dá ponto sem nó.
E quanto mais pensava, mais a curiosidade aumentava. Não aguentou. Abriu de vez a portinhola, entrou na vaga e constatou que era mesmo o carro do Marcão. Deu vontade de "sacanear" o amigo, bater na porta, aprontar uma confusão ali. Depois, repensando, achou melhor não exagerar. Observou que o vidro da porta do carro estava um pouco abaixado. Imaginou que, na pressa, no afã do prazer, Marcão se descuidara. Resolveu então que iria aprontar uma prá ele. Enfiou a mão pelo vidro, abriu cuidadosamente a porta e arrancou o dvd player do veículo, não todo, mas só o dispositivo de segurança. E era justamente o "equipamento importado", como gostava de gabar-se o amigo.
Feito isso, foi também para o seu cantinho do prazer. E já mal esperava o momento em que aprontaria a gozação com o Marcão.
Passados uns dois dias, numa tarde de domingo, quando a turma se reunia no boteco para a cervejinha, viu que Marcão estava na roda e todo prosa. Parou o carro, pegou o dispositivo do dvd player, colocou no bolso da blusa e se aprontou para a gozação.
O papo animado, como sempre numa roda de amigos, só falavam sobre mulheres. Os imaginários segredos quebravam-se todos naquela mesa. Cada um queria contar mais vantagem que o outro. E o Marcão estava mesmo todo prosa!
— Mulher gosta mesmo é de carinho! E lá em casa é assim, dou muito carinho à "patroa", que é prá nunca reclamar qualquer falta! Do jeito que a coisa anda, meus camaradas, quem gosta de ser Ricardão, não pode dar chance de ser surpreendido pelo cara...
E caiam em risadas desmedidas. Era sempre hilário ridicularizar os coitados dos homens, daquela cidadezinha, que nem sabiam da existência de um Ricardão em casa.
E, nesse embalo, nessa conversa de Ricardão, foi ali que resolveu aprontar com o Marcão. Tirou um dvd do bolso e, como o carro do Marcão estava bem na porta do boteco, foi logo dizendo:
— Aí Marcão! Comprei esse DVD aqui, muito bem recomendado. Dizem que o som é magnífico. São os sucessos de Vitor e Leo, gravados ao vivo! Que tal a gente ligar no seu carro, para animar a turma aqui?!
O Marcão, meio sem graça, retrucou:
— Pessoal, eu lamento. Não vai ter jeito não! É que, na sexta-feira passada minha esposa saiu no carro prá fazer umas compras e, segundo ela, quando retornou ao estacionamento, haviam roubado o dvd player do carro. Aquele equipamento é tecnologia pura e de primeiro mundo, mas ela se esqueceu de retirar o dispositivo de segurança. E sem ele fica imprestável. E o pior é que ninguém viu nada! Quem pegou vai faturar grana alta. Eu fiquei no maior prejuízo.
O amigo, sem saber se dava uma boa gargalhada ou se chorava a dor do Marcão, engoliu a seco as palavras. Aquele super-homem virou pateta! Sexta-feira, naquela hora, não era o Marcão, mas a esposa dele quem estava naquela suite...
Sem saber o que fazer com o "bendito" dispositivo importado, permaneceu calado e pensativo: "é meu amigo, o seu prejuízo é muito maior do que você imagina e vai crescer ainda mais..."
Publicado originalmente em 07 de agosto de 2010
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