Meus Rabiscos (contos e causos)
Ainda morava em Brasília quando sucedeu-se o episódio. Como a família adorava uma pescaria, descobrimos um "pesque e solte" (pesca esportiva) na cidade de Luziânia, aproximadamente uns 90 km de distância.
Os finais de semana eram aguardados com ansiedade! Passávamos o dia, fosse sábado ou domingo, pescando e soltando os peixes! E olha que havia peixes enormes, de 30 até 60 quilos.
O problema começou com algumas pescarias que não resultaram em nada. O dia inteiro, à beira d'água e dois ou quatro peixinhos. Enquanto isso, meus filhos e eu assistíamos aos vizinhos pegarem um após o outro. Alguma coisa estava errada. Só podia ser a "isca"!
Incrédulos, só observávamos saírem surubins, pacus, tambacus, dourados, matrinxãs e a famosa pirarara, que reinava soberana, como sendo o maior peixe do lugar. E nós? Nada! A Família Morais, já abatida, não tinha sucesso!
Algo precisava ser feito! Lembrei-me de outros tempos, quando pescava com "tripa de galinha". Informei-me e diziam lá que era, de fato, uma ótima isca. Naquele poço os surubins e pirararas adoravam, e corria risco de entrarem outros atrevidos no anzol.
Estava decidido! Haveria de providenciar as tais "tripas". Perguntei aqui e acolá, mas ninguém conhecia algum estabelecimento onde poderiam ser compradas. Andanças e andanças. Vasculhei internet. Catálogo telefone então, foram inúmeras e infrutíferas ligações! O jeito era "apelar" para outra solução!
Recorri então ao meu fiel amigo, que era motorista da faculdade que eu dirigia. Um paraibano capaz da melhor amizade, prestativo, colaborativo e "pau prá toda obra". Manifestei a ele a angústia, no que, prontamente, já ofereceu resposta:
— Cidadão! Aqui na feira de Ceilândia a gente compra essa galinha, viva e de boa qualidade! Vamos lá! Vamos resolver isso! Vem comigo!
Galinha viva!? Já saí ressabiado. Pobrezinha da bichinha seria sacrificada! E tudo por conta dos peixes! Mas, se era para resolver, que assim fosse.
Circulamos pela feira, que tinha de tudo! Tudo mesmo! E ele, já entrosado com a turma, foi logo escolhendo a penosa, apalpando-a e já declarando, sem a menor sombra de dúvidas:
— Essa aqui cidadão! Pode preparar que o professor vai levar essa!
Situação resolvida, nada disse. Esperei o vendedor amarrar os pés da coitada, colocar num saco de nylon e paguei.
Agora eu quero ver, pensava no caminho de volta! Essa isca é a melhor! E enquanto imaginava as possibilidades da pescaria, olhava, de relance, para a coitada! Quem vai fazer o serviço sujo?!
Nesse dia o meu carro estava na revisão, por isso a coitada teve que ficar "amoitada" no porta malas do "veículo oficial", até lá pelas nove da noite. Eu iria sair mais cedo, pois precisava executar a sentença já proferida à pobre galinácea!
Situações encaminhadas, teria ainda que atravessar a cidade. Combinei com a esposa e meninos que me aguardassem em frente à Catedral, pois eles estariam por perto, numa festinha de aniversário. Ao chegarmos, precisava fazer a troca de ambiente da pobre coitada. Já fui descendo do carro e anunciando aos filhos, com um largo sorriso:
— Meus amigos, resolvemos o problema de isca! Agora quero ver! Aqui está a solução!
No que peguei no saco de nylon para tirar a bichinha, eis que ela se solta e vai ao chão. E pasmem! Mesmo com as pernas amarradas, a danada saltitava de um lado para o outro, já quase se soltando. Aí foi aquela correria. Pega! Segura! Não deixa ela escapar!
Dez da noite, em plena Esplanada dos Ministérios, em frente à Catedral, uma pobre galinha tentava, desesperadamente, fugir da morte! E um bando de doidos pulavam atrás dela, até que, numa "ponte" de beleza plástica que faria inveja a muitos goleiros selecionáveis, meu fiel amigo agarrou-a!
— Peguei! Essa mocinha aqui não escapa mais! Dê cá o saco!
Missão parcialmente cumprida, faltava o desfecho. A pior parte! Que mãos "assassinas" iriam decepar a vida da pobrezinha?! Olhava meus filhos, enquanto a esposa dirigia, e o semblante silenciara-lhes a voz. Também pensavam no cruel destino da coitada! Ressabiado, tentei reanimá-los:
— Amanhã pegaremos todos os peixes! Os maiores!
Não adiantou muito. Resolvi então não insistir.
Já em casa, na área de serviços, começou uma disputa para ver quem não teria que sacrificar a "pretinha". Eu dizia à esposa:
— Sua mãe é acostumada a fazer isso, então você sabe como! Lá, na roça, já vi você ajudar muitas e muitas vezes a depenar as galinhas para o almoço.
— Está bem. Vou tentar, mas não sei se consigo!
A morte da coitada, mesmo anunciada deste aquela tarde, precisava seguir todo um ritual macabro. Não era tão simples assim. Primeiro era preciso colocar bastante água para ferver. Depois de morta a bichinha seria mergulhada no tacho para facilitar o depeno. Depois, era preciso colocar um prato sob o pescoço, para colher o sangue. O prato ainda recebia uma espremida de limão "capeta", era para não permitir que sangue "talhasse" e fosse usado depois para fazer o "molho pardo". Para o sacrifício era preciso pisar sobre os dois pés da "pretinha", prendendo-a ao chão. A mão esquerda da "carrasca" segurava a cabeça da coitada e a mão direita empunhava uma faca. Pescoço erguido, começava um cuidadoso trabalho para retirar todas as penas, deixando à mostra a parte que sofreria o golpe fatal! Cenas sinistras aquelas!
Quase mudei de ideia! Entretanto, o que iria fazer com a penosa? Ali, no condomínio, as pessoas tinham cachorros como animais de estimação, não galinhas! E como iria fazer para passear com a "pretinha" pelas ruas?! Não! Não havia como retroceder! O ridículo sairia mais caro.
Prato no chão sob o pescoço desnudado e lá foi ela. Num golpe só o sangue já jorrava. Logo o corpo da "pretinha" esmoreceu e foi largado ao chão, todo forrado com papelões.
— Pronto! Está feito! Agora é só depená-la e rápido, caso contrário poderá "encruar"!
Mal a esposa acabara de pronunciar tais palavras e eis que a danada da galinha resolve se levantar e com o pescoço já pendurado, começa a se debater e a pular na área, ziguezagueando de um lado a outro, espalhando sangue pelas paredes. Uma confusão!
— Bem! Ajuda aqui! Rápido!
Chegamos todos juntos para ver a cena horripilante! Aí já não havia mais o que fazer! Tomei a faca na mão, saí à caça da bichinha, me lambuzei todo, mas ao agarrá-la, mesmo com dor no coração, desferi o golpe mortal!
Mortal?! Que nada! Feito "mula sem cabeça" a "pretinha" ainda tentou um último suspiro, até que, contrariada, aceitou o seu destino!
Depois de tudo, demos algumas risadas constrangidas por conta da nossa falta de jeito. Era tão comum aquilo lá na roça, na casa da sogra, que não imaginávamos tamanha e traumática dificuldade.
No outro dia até que pegamos mesmo alguns peixes com a isca, mas eu estava com tanta dó da "pretinha", de certa forma me afeiçoara a ela e, ali, empunhando o molinete, fiz um juramento "in memoriam" de que jamais repetiria tal ato! Nenhuma outra penosa sofreria tal sacrifício. Mas a isca foi aprovada! E os peixes mostrados!
Augusto conseguiu fisgar essa Pirarara |
Esse pintado aí foi fisgado pelo Lucas |
Publicado originalmente em 21 de agosto de 2010
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