Meus Rabiscos
Do alto, olhares entremeados por grades vislumbram movimentos
frenéticos da vida que corre lá fora. Transeuntes apressados, passos
largos, outros tantos desleixados, mornos... Buzinas infernais, ronco de
motores, freios... Gente que vai, gente que volta. Vidas que desfilam,
anonimamente, ante olhares já estupefatos.
Nesse caos, de intermitentes sons, um silêncio prende a atenção. Lá está
ela. A mulher sozinha, em seus diálogos imaginários e gestos
intermináveis. Com uma pequena faca na mão,ou algo parecido, aos poucos o
mato é desbastado. Célere e incansável, ela faz os galhos e ramos se
desprenderem da cerca e ao chão se entregarem. E ali, paralisados, ao
calor do sol escaldante, desfalecem.
E a mulher, de roupas imundas, rasgadas no incansável uso, não abre mão
da sua touca vermelha. É seu protetor solar que enfeita a face já
maltratada pelo tempo...
Dizem que se chama Lúcia. Ali, naquela rua, sua casa imaginária é limpa,
às custas de uma velha vassoura carcomida, já quase aposentada. Seu
fogão, sem trempes, não sabe o que é uma panela... acostumou-se à velha
latinha, dessas de embalagens descartáveis, todavia, o fogo permanece
leal. Não faz escolhas. Nem predileção tem. O que será cozinhado? A
“farta” refeição cabe ali, na minúscula vasilha, colorida de preto por
conta de tanto fogo aturado.
Vez por outra eu já a vi pentear, incessantemente, os emaranhados fios
de cabelos que multiplicam o volume de forma exuberante. Ela os detém,
amarra uma fita, os faz aquietarem-se à força. Esse gestual é feito
sempre ao cair da noite, quando a escuridão invade-lhe a “casa” e ela
precisa buscar um teto que faça diminuir o frio... Nada melhor que o
aconchego sob o viaduto da Amazonas. O cheiro é insuportável, bem
diferente de sua “casa” tão limpa... Mas, resignada, ali se refaz para
um novo dia.
De longe eu imagino a voz e as questões discutidas... Com quem será ela
conversa? O que diz? E por que tanto gesticula? Cessa os movimentos...
novamente gesticula, ora com uma mão, ora com a outra... retoma a
“capina” daquela cerca de terreno abandonado. Uma trilha de ramos e
galhos jazidos demarcam o extenuante labor.
Quem será aquela mulher?! Em qual encruzilhada da estrada seus sonhos
foram perdidos? Qual foi o desencontro que roubou-lhe a sanidade? Será
que aprendeu a driblar a solidão? Que laços afetivos rompeu ou até
construiu?
Não resisto. Da janela mesmo eu tiro uma fotografia daquela cena. E,
essa "pessoinha" aí, com sua touca vermelha, é ela, a Lúcia. A foto espelha bem a
invisibilidade social a que se submete aquela mulher... Ou ao que nós, que
emprestamos apenas os olhares curiosos, a fazemos submeter-se.
E agora? Serei invasivo se mudar-lhe a escolha? Nada a fazer... O
Serviço Social bem que tentou... Ela, intrépida e resoluta, permanece
firme no seu propósito de manter-se fiel à sua escolha, aos seus
diálogos, à sua “casa” e à incessante “capina”.
Então, nada me resta senão olhar prá ela e prá dentro e, quem sabe, aprender um pouco mais sobre tantas e tantas escolhas do cotidiano. Depois, erguer os olhos em oração silenciosa e clamar Luz a irradiar proteção e saúde...
Publicado originalmente em 02 de maio de 2010
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