Meus Rabiscos
Filme "A Guerra do Fogo" |
Noite
fria aquela. As nuvens fecharam a cara, lançaram olhares tenebrosos e
com elas o movimento uivante do gélido vento. Pedia cama. Edredon de
maciez convidativa.
Aconchego dos corpos. Eu nem sabia, mas era aniversario de casamento.
Eu ficara durante o dia remexendo em papéis, relatórios a fazer e a data
equivocada na cabeça.
Nada pior que isso: esquecer datas. O olhar fulminante passa a acompanhar cada movimento. Como se perguntas fossem feitas ininterruptamente. Será que ele não vai lembrar? Esses homens! Que importância dão às datas? Que falta de sensibilidade!
De repente, já desistindo da possibilidade do assunto ser retomado, finalmente confessa o incômodo: "você sabe que dia é hoje"? Eu, ainda mergulhado em datas equivocadas, prontamente respondi, sem a menor cerimônia: "ora, dia três".
A vermelhidão da face já me dava a entender. Não era. A ficha caiu. Como pude me esquecer? Que insensatez a minha! Quanta ausência de cumplicidade!
Nada pior que isso: esquecer datas. O olhar fulminante passa a acompanhar cada movimento. Como se perguntas fossem feitas ininterruptamente. Será que ele não vai lembrar? Esses homens! Que importância dão às datas? Que falta de sensibilidade!
De repente, já desistindo da possibilidade do assunto ser retomado, finalmente confessa o incômodo: "você sabe que dia é hoje"? Eu, ainda mergulhado em datas equivocadas, prontamente respondi, sem a menor cerimônia: "ora, dia três".
A vermelhidão da face já me dava a entender. Não era. A ficha caiu. Como pude me esquecer? Que insensatez a minha! Quanta ausência de cumplicidade!
Tempo
então de refazer os enganos e de nada adiantava tentar explicar as
confusões com datas. Melhor seria tentar reparar, com urgência. Sair
para jantar. Era uma tentativa desesperada de compensar a frustração sentida.
Restaurante aconchegante. Costumávamos frequentá-lo em outros tempos. Um barzinho no canto, lugares mais acolhedores que outros. Mesas esparramadas. Famílias ocupando os pontos estratégicos. Não gosto do meio. Preciso ter ampla visibilidade de todo o movimento. Ali, no meio, era como se estivesse no centro da roda, onde todos os olhares passeavam. Não podia refugar. Qualquer desculpa seria imperdoável. Ouviria ao longo da semana toda sorte de lamentações. Resoluto, sem demonstrar incômodo, só restou escolher para qual lado daria as costas.
Azar o meu. Já sentado é que percebi um espelho envelhecido numa parte do balcão de atendimento. Isso não estava aí, eu pensei. Tarde demais. Precisava fazer valer o momento, valoriza-lo como merecia, independente das minhas insatisfações ou estorvos.
Para não olhar o espelho, precisava ficar meio de lado. Não, incômodo demais! isso não! Aí já seria exigir muito! O grande problema é que o espelho refletia a imagem de um casal acompanhado de um amigo. E, por mais que eu quisesse, meus olhos insistiam em passear pelo espelho. Não buscavam a mulher. Muito ao contrário. Eu não tinha olhos para mais ninguém. Precisava reparar um desacerto, compromisso inarredável.
Os olhares do homem acompanhado pressentiram ameaças. Elas não existiam, mas o espelho argumentava contrariamente. Maldito espelho! E os olhos não paravam de se mover em direção a ele. Por mais esforço que fizesse, ele estava ali, na minha frente, impassível. Impassível nada! Aquele espelho estava adorando a cena! Propunha maldades quando delas eu fugia. Precisava arranjar uma forma de me esquivar. O jeito foi buscar as imagens da televisão. Coisa mais “chinfrim”, logo pensei.
E, para meu maior espanto e contrariedade, ao buscar outros cenários fui eu quem passou a incomodar-se com olhares lançados à mesa. Num canto, um pouco escondido pela escassez de luz, havia um sujeito, barba e cabelos brancos, que não significavam idade avançada, parecia insistir olhar em direção à minha mulher. Indignei-me! Cara folgado! Que falta de respeito! Pensava nisso e me lembrava do espelho. Certamente todo tipo de impropérios já me haviam sido destilados.
E esse duplo incômodo durou uma eternidade. Eu até já conseguia não olhar o espelho. O meu incômodo era maior. Precisava me concentrar nele. Dito e feito! Resolvi que devia vigiar mais de perto os olhares furtivos. Passei a fulminar o sujeito na penumbra em que se escondia. Por pouco não me levantara para perguntar-lhe o que havia perdido por ali.
E assim foi boa parte da noite. Jantamos, brindamos, sorrimos. Relembramos tempos idos. Passagens românticas, dolorosas e engraçadas. Havia conseguido amenizar o “bendito” esquecimento das datas. O melhor ainda estava por vir, pensava eu, já imaginando o edredom. Melhor então apressar os desejos. Pagar a conta. Agradecer e bater em retirada.
O sujeito ainda continuava lá, sorvendo seu whisky a conta gotas. O espelho? Já nem sabia que ele existia. Já não era perseguido pelo camarada, da outra mesa, com a mulher. Ele havia constatado que as intenções não se direcionavam àquele lugar. Quanto a mim, o problema ainda permanecia sem solução. Vez por outra eu pegava o sujeito parecendo lançar olhares suspeitos. Uma afronta!
Na saída do balcão de atendimento eu teria que passar por ele. Feito. Não resisti. Fechei a cara. Semblante compenetrado, amarrado. E sisudo impus minha voz. A mais forte e grossa que consegui. Olhei o “vovô” e já fui logo cumprimentando, com toda a ironia e sarcasmo: "boa noite, tudo bem? Nos conhecemos de algum lugar"?
Aí me surpreendi mais ainda. O "cara", educadamente acenou que não. Meneou a cabeça e num relance se virou. Quase morri de vergonha! O "vovô" era estrábico ao extremo. Quando parecia me olhar na conversa, na verdade direcionava à porta. Esse sim, era um vesgo com propriedade! Já não dei continuidade à conversa. Apressei os passos e desapareci.
Já na volta, dei risadas da cena. Passara a noite fugindo de um olhar ciumento e perseguindo um outro invasor. Ao final, nada se revelou verdade. Ainda bem que a minha calmaria estava de plantão.
Já pensando no edredom, imaginando as cenas calientes, de sobressalto sou tomado por resquícios de um “machismo” que beirava à mais pueril insegurança. Absorto ainda nas cenas experimentadas, indagações perambularam incitando a ira. Seria mesmo o estrabismo, ou fui ludibriado? Coisa difícil perguntar à mulher. Mulheres não revelam, a tempo, tais ocorrências! Será?
Sem pestanejar, desferi logo o golpe. Ela, com toda calma, como se em hipótese alguma houvesse sido flertada, nega veementemente. E para comprovar, aperta o abraço, aconchega seu corpo ao meu e lasca logo um beijo. Pensei comigo: "sei não, carinho demais... amor demais..."
Melhor optar pelo estrabismo!
Restaurante aconchegante. Costumávamos frequentá-lo em outros tempos. Um barzinho no canto, lugares mais acolhedores que outros. Mesas esparramadas. Famílias ocupando os pontos estratégicos. Não gosto do meio. Preciso ter ampla visibilidade de todo o movimento. Ali, no meio, era como se estivesse no centro da roda, onde todos os olhares passeavam. Não podia refugar. Qualquer desculpa seria imperdoável. Ouviria ao longo da semana toda sorte de lamentações. Resoluto, sem demonstrar incômodo, só restou escolher para qual lado daria as costas.
Azar o meu. Já sentado é que percebi um espelho envelhecido numa parte do balcão de atendimento. Isso não estava aí, eu pensei. Tarde demais. Precisava fazer valer o momento, valoriza-lo como merecia, independente das minhas insatisfações ou estorvos.
Para não olhar o espelho, precisava ficar meio de lado. Não, incômodo demais! isso não! Aí já seria exigir muito! O grande problema é que o espelho refletia a imagem de um casal acompanhado de um amigo. E, por mais que eu quisesse, meus olhos insistiam em passear pelo espelho. Não buscavam a mulher. Muito ao contrário. Eu não tinha olhos para mais ninguém. Precisava reparar um desacerto, compromisso inarredável.
Os olhares do homem acompanhado pressentiram ameaças. Elas não existiam, mas o espelho argumentava contrariamente. Maldito espelho! E os olhos não paravam de se mover em direção a ele. Por mais esforço que fizesse, ele estava ali, na minha frente, impassível. Impassível nada! Aquele espelho estava adorando a cena! Propunha maldades quando delas eu fugia. Precisava arranjar uma forma de me esquivar. O jeito foi buscar as imagens da televisão. Coisa mais “chinfrim”, logo pensei.
E, para meu maior espanto e contrariedade, ao buscar outros cenários fui eu quem passou a incomodar-se com olhares lançados à mesa. Num canto, um pouco escondido pela escassez de luz, havia um sujeito, barba e cabelos brancos, que não significavam idade avançada, parecia insistir olhar em direção à minha mulher. Indignei-me! Cara folgado! Que falta de respeito! Pensava nisso e me lembrava do espelho. Certamente todo tipo de impropérios já me haviam sido destilados.
E esse duplo incômodo durou uma eternidade. Eu até já conseguia não olhar o espelho. O meu incômodo era maior. Precisava me concentrar nele. Dito e feito! Resolvi que devia vigiar mais de perto os olhares furtivos. Passei a fulminar o sujeito na penumbra em que se escondia. Por pouco não me levantara para perguntar-lhe o que havia perdido por ali.
E assim foi boa parte da noite. Jantamos, brindamos, sorrimos. Relembramos tempos idos. Passagens românticas, dolorosas e engraçadas. Havia conseguido amenizar o “bendito” esquecimento das datas. O melhor ainda estava por vir, pensava eu, já imaginando o edredom. Melhor então apressar os desejos. Pagar a conta. Agradecer e bater em retirada.
O sujeito ainda continuava lá, sorvendo seu whisky a conta gotas. O espelho? Já nem sabia que ele existia. Já não era perseguido pelo camarada, da outra mesa, com a mulher. Ele havia constatado que as intenções não se direcionavam àquele lugar. Quanto a mim, o problema ainda permanecia sem solução. Vez por outra eu pegava o sujeito parecendo lançar olhares suspeitos. Uma afronta!
Na saída do balcão de atendimento eu teria que passar por ele. Feito. Não resisti. Fechei a cara. Semblante compenetrado, amarrado. E sisudo impus minha voz. A mais forte e grossa que consegui. Olhei o “vovô” e já fui logo cumprimentando, com toda a ironia e sarcasmo: "boa noite, tudo bem? Nos conhecemos de algum lugar"?
Aí me surpreendi mais ainda. O "cara", educadamente acenou que não. Meneou a cabeça e num relance se virou. Quase morri de vergonha! O "vovô" era estrábico ao extremo. Quando parecia me olhar na conversa, na verdade direcionava à porta. Esse sim, era um vesgo com propriedade! Já não dei continuidade à conversa. Apressei os passos e desapareci.
Já na volta, dei risadas da cena. Passara a noite fugindo de um olhar ciumento e perseguindo um outro invasor. Ao final, nada se revelou verdade. Ainda bem que a minha calmaria estava de plantão.
Já pensando no edredom, imaginando as cenas calientes, de sobressalto sou tomado por resquícios de um “machismo” que beirava à mais pueril insegurança. Absorto ainda nas cenas experimentadas, indagações perambularam incitando a ira. Seria mesmo o estrabismo, ou fui ludibriado? Coisa difícil perguntar à mulher. Mulheres não revelam, a tempo, tais ocorrências! Será?
Sem pestanejar, desferi logo o golpe. Ela, com toda calma, como se em hipótese alguma houvesse sido flertada, nega veementemente. E para comprovar, aperta o abraço, aconchega seu corpo ao meu e lasca logo um beijo. Pensei comigo: "sei não, carinho demais... amor demais..."
Melhor optar pelo estrabismo!
Publicado originalmente em 07 de junho de 2010
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Fique à vontade!
Os comentários têm a função precípua de precipitar a maturação da reflexão, do texto “apossado”. É um ponto de partida, sem o ponto de chegada. É o exercício da empatia no rompimento do isolacionismo, posto que, tudo está conectado. É a sua fala complementando a minha. Por isso mesmo fique à vontade para o diálogo: comentar, concordar, discordar, acordar...