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Rubem Alves
Há a história de dois ursos que
caíram numa armadilha e foram levados para um circo. Um deles, com certeza mais
inteligente que o outro, aprendeu logo a se equilibrar na bola e a andar no
monociclo. Seu retrato começou a aparecer em cartazes e todo o mundo batia
palmas: “Como é inteligente”. O outro, burro, ficava amuado num canto, e, por
mais que o treinador fizesse promessas e ameaças, não dava sinais de entender.
Chamaram o psicólogo do circo e o diagnóstico veio rápido: “É inútil insistir.
O QI é muito baixo...”.
Ficou abandonado num canto, sem
retratos e sem aplausos, urso burro, sem serventia... O tempo passou. Veio a
crise econômica e o circo foi à falência. Concluíram que a coisa mais caridosa
que se poderia fazer aos animais era devolvê-los às florestas de onde haviam
sido tirados. E assim, os dois ursos fizeram a longa viagem de volta.
Estranho que em meio à viagem o
urso tido por burro parece ter acordado da letargia, como se ele estivesse
reconhecendo lugares velhos, odores familiares, enquanto que seu amigo, de QI
alto, brincava tristemente com a bola, último presente. Finalmente, chegaram e
foram soltos.
O urso burro sorriu, com aquele
sorriso que os ursos entendem, deu um urro de prazer e abraçou aquele mundo
lindo de que nunca se esquecera. O urso inteligente subiu na sua bola e começou
o número que sabia tão bem. Era só o que sabia fazer. Foi então que ele
entendeu, em meio às memórias de gritos de crianças, cheiro de pipoca, música
de banda, saltos de trapezistas e peixes mortos servidos na boca, que há uma
inteligência que é boa para circo. O problema é que ela não presta para viver.
Para exibir sua inteligência ele tivera de se esquecer de muitas coisas. E este
esquecimento seria sua morte.
E podemo-nos perguntar se o
desenvolvimento da inteligência não se dá, sempre, às custas de coisas que devem
ser esquecidas, abandonadas, deixadas atrás...
Rubem
Alves (Estórias de quem gosta de ensinar)
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