sexta-feira, 25 de abril de 2014

A Enchente

Metáforas
Enchente

Certa ocasião, numa cidadezinha distante, ocorreu um grande temporal. Nunca chovera tanto naquele lugar. Foram dias e dias de chuva. O pequeno rio que cortava as ruas, agigantou-se, enorme se tornou e começou a devorar casas, inundando tudo sem a menor cerimônia.

Uma bondosa velhinha, muito religiosa, dessas beatas de pequenas cidades, recusava-se incessantemente a deixar sua casa, já invadida pela enchente. Teimava insistentemente e bravamente resistia. Os vizinhos, quase todos, passavam por sua casinha e diziam-lhe:

—Senhora! Vamos que a enchente vai inundar tudo e pode carregá-la. Vem com a gente. Deixe-nos ajudá-la!

Ela respondia sempre com a mesma feição no rosto:

—Não! Não vou sair daqui com ninguém! Deus vai me tirar daqui.

Todos insistiam e muito, mas nada adiantava. Ninguém conseguia retirá-la daquele lugar. E não podia-se dizer que era amor demasiado pela casa, era pura teimosia. Veio então o pessoal da guarda civil:

—Senhora! Vamos sair deste barraco que a enchente já está inundando toda a cidade. Aqui a senhora corre risco de vida.

            Ela dava sempre a mesma resposta:

—Não meus filhos! Deus vai me tirar daqui. 

A esta altura, a água já invadira sua casa e alcançava quase um metro. Veio a polícia do lugarejo:

—Senhora! Saia já desta casa, senão a senhora morrerá.

Ela nem ligou e voltou a responder:

—Eu amo a Deus e ele vai me tirar daqui. Só saio pelas mãos de Deus.

O corpo de bombeiros foi chamado e quando os valentes bombeiros se aproximaram da casa, num pequeno barco, constataram que a água já ultrapassava um metro de altura:

—Senhora! Não vê que a água já invadiu sua casa? Deixe-nos ajudá-la! Vamos! Dê-nos sua mão e suba no barco.

Ela, sentada em uma cadeira colocada em cima da mesa, nem mudou  a postura:

—Já disse que só saio daqui pelas mãos de Deus. Ele vai me ajudar.

Muitos outros apelos foram feitos e nada resolveu. Muitos outros tentaram e nada adiantou. Quando a água já ameaçava querer cobrir a casa da boa velhinha, o corpo de bombeiros, sensibilizado, não mediu esforços e mandou que um helicóptero recolhesse a boa velhinha. Posicionou-se bem próximo ao telhado da casa, que a esta altura já  abrigava a boa velhinha:

—Senhora! Por favor, deixe de tanta teimosia e venha. A senhora vai morrer se permanecer sentada neste telhado. A enchente ainda virá mais forte.

Ela, pacientemente falou:

—Já disse. Só saio daqui pelas mãos de Deus. Ele vai me ajudar.

Depois daquela última conversa, ninguém mais ouviu falar da boa velhinha. Mas, no céu, recebida pelo Senhor da Vida, ela pôs-se a questioná-lo:

—Como pode senhor?! Eu esperei tanto, confiei tanto, acreditei tanto e o senhor me deixou morrer?! Como pode Senhor?!  Como não apareceu?! Por que me deixou morrer sem me ajudar?! Por que não me salvou?!

Uma voz mansa, tranquila, bondosa e mágica se fez então ecoar:

—Minha filha! Tudo fiz para salvá-la. Mandei pessoas a persuadi-la. Pessoas para oferecerem-se em ajuda. Mandei autoridades. Mandei barco para retirá-la e olha, até mesmo um helicóptero você recusou.

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